Thursday, November 04, 2010

O PÚCAROS DO CARLOS


Às 0h15, toca a sineta. «Fechou a cloaca», grita Carlos Pinto, proprietário do Púcaros, situado nas arcadas de Miragaia, em frente à Alfândega do Porto. É sempre assim que começam as noites de poesia, todas as quartas-feiras (muitas vezes, só têm início na madrugada de quinta).
O que se segue, pela noite dentro, é um desfilar de versos mais ou menos conhecidos, ditos por gente mais ou menos inspirada. A única regra é a liberdade total, a raiar a anarquia: não há tema, não há ordem definida, não há hora para acabar.

Os conflitos entre vários participantes desta tertúlia são recorrentes, mas as querelas dificilmente causam mossa. Quando é preciso, Carlos Pinto põe ordem na casa, mas sempre de forma bem humorada. «Digo tudo porque ouço tudo», explica. Há dois ou três palavrões lançados para o ar e a poesia continua.

Um dos habitués é Anthero Monteiro, que já tem várias obras de poesia publicadas. Numa mala, traz uns «cinco quilos de livros» e mais uma pasta cheia de poemas impressos. «O que faz rir é geralmente o que funciona melhor. No entanto, o poema mais dito aqui - e, provavelmente, em qualquer tertúlia poética portuguesa - deve ser o Cântico Negro, de José Régio», observa.

Quem também tem obra publicada é António Pedro Ribeiro, que apresentou no próprio Púcaros, em Maio, uma candidatura independente à presidência da República. «Quero fazer passar uma mensagem anti-mercado, contra o utilitarismo e a transformação de tudo e de todos em mercadorias», afirma. Esta incursão política não é inesperada: em 2006, o poeta escreveu Declaração de Amor ao Primeiro-Ministro, uma provocação a desafiar o líder do Governo.

As noites de poesia do Púcaros cumprem 14 anos em Novembro e Carlos Pinto orgulha-se de ser o responsável pela «tertúlia poética ininterrupta mais antiga do país». A ideia inicial era «fazer uma noite dedicada aos dizeres populares, mas essa malta não é acessível», relembra.

Por isso, alargou-se o conceito à poesia e, desde então, todas as quartas-feiras, o ritual é sagrado: «Mesmo quando isto fica alagado, cumpre-se a tradição. Vamos ali para o cimo da rampa, recitamos dois ou três poemas e dizemos que nem as cheias nos hão-de calar». Numa sessão comum, a leitura é feita no meio das arcadas que dividem o bar - imaginamos que o espaço tenha sido em tempos idos um armazém de pipas de vinho do Porto. A bebida oficial é a sangria, servida nos púcaros que dão o nome à casa. Quem pedir uma bebida não alcoólica arrisca-se a ouvir uma boca do proprietário.

Muitos participantes lêem poemas de sua autoria e destas noites já resultou a colectânea Um Púcaro de Poesia, da editora Corpos. Mas esta é uma tertúlia de amadores e apaixonados pelas palavras: quem vem apenas ouvir poesia é bem-vindo, quem vem ler pela primeira vez é bem recebido.

As picardias estão reservadas aos veteranos: na noite a que assistimos criticou-se o mau gosto de deixar um poema a meio e a incapacidade dos presentes para «ir até Saturno» através da poesia. As palavras foram azedas , mas na semana seguinte estavam lá todos, amigos como dantes.

SOL

2 comments:

Rod said...

Gostei do seu blog
Abraço do companheiro do Brasil

http://rodheltir.blogspot.com/

A. Pedro Ribeiro said...

abraço, amigo.