Tuesday, November 23, 2010

ANIMAL DE PALCO


ANIMAL DE PALCO

A Susana diz que sou um animal de palco. Ontem fui, de facto, um animal de palco. As pessoas vinham falar comigo espontaneamente, felicitavam-me pela minha performance. Não, não são só os meus tectos que digo bem. Há outros textos com que me identifico, com que me solto. Sou fundamentalmente um aedo mas não apenas um aedo. Só falta que me comecem a pagar regularmente por isso. Ontem estava triste, há dois dias que tinha estado entediado na aldeia mas, como a Susana disse, houve qualquer coisa que explodiu dentro de mim, levantei-me e vesti a pele do animal de palco. Aprendi com o Jim Morrison, com o Robert Plant, com o Joaquim Castro Caldas, com o Adolfo Luxúria Canibal, com o António Manuel Ribeiro. É esse em que me torno fora daqui, da confeitaria. Nem sempre o consigo ser mas ele vem, sobe ao palco. É insolente e maldito. Vive. Provoca. Desafia o tédio, os poderes, os mercados. Chama a mulher. É louco. Não tem limites. Nada tem a ver com o personagem pacato e bem-comportado que vem à confeitaria. É realmente outro. Não tem inibições, nem castrações, nem sequer tem os media espetados nos cornos. É Dionisos. Não é deste tempo e é deste tempo. Vai atrás da glória, do divino, do próprio Graal. Mas percorre a estrada do excesso em busca do palácio da sabedoria, como William Blake preconizava. Torna-se realmente noutro, talvez se torne naquele que efectivamente é, na esteira de Nietzsche. Depois abandona o palco e regressa ao cidadão aparentemente comum que lê jornais e vê TV, ao erudito que escreve e devora livros. É claro que no acto da escrita, por vezes, também se ultrapassa a si mesmo, até mesmo na leitura de determinados autores. Contudo, não se vai pôr aos berros na “Motina”, no “Piolho” ou na “Brasileira”. Nem se põe a recitar poemas em pleno café, a menos que isso estivesse previamente combinado. É evidente que nem sempre soube descer do palco, nem sempre soube despir a pele do animal de palco. Aconteceu, por exemplo, em Paredes de Coura 2006, depois duma actuação memorável com o Adolfo Luxúria Canibal e com o Isaque Ferreira. Era como se continuasse no palco, ouvia vozes, ouvia pessoas que se lhe dirigiam, pensava que estavam sempre a falar dele. Chegou a casa desfeito em lágrimas. Dias depois, estava a partir vidros em Vila do Conde. O poema “Paredes de Coura (Fodido dos Cornos)” relata-o. Eis o animal de palco- eis aquele que queres apanhar. O cabotino, feito Morrison, feito Dionisos, que dançava em tronco nu no “Clube 84” e que, por isso, foi agredido. O poeta que actuou no Campo Alegre, no Púcaros, no Pinguim, no Pátio, no Deslize, no Clube Literário. Aquele a quem chamaram infame, a quem chegaram a perguntar se seguia alguma regra. O palco, a ribalta, transformam-nos, fazem de nós outros homens, quiçá, o homem porque nos batemos, o homem que se ultrapassa, que se liberta: orgulhoso, egocêntrico, desafiante, amante, criador, vivo. O homem de que temos falado ao longo deste livro: o bailarino de Nietzsche.

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