Tuesday, September 23, 2008

NERVAL


Sylvie, que integra Les filles du Feu, é tida como obra-prima de Nerval; de modo superlativo, como um dos maiores livros já escritos por Umberto Eco, [19] em acréscimo aos elogios de Proust a essa novela em Contre Sainte-Beuve. Nela, dois tempos se alternam, o presente do narrador e seu passado, e dois espaços que também são planos de realidade, de Paris e da província, por sua vez associados a três personagens femininas: Sylvie, a quem o protagonista quer reencontrar; Adrienne, rememorada; e Aurélia, a musa perdida. Mas essas alternâncias de espaço e tempo, ao se sucederem, também se multiplicam, pois o tempo de um capítulo recorda o tempo de outro, e esse de outro, e assim por diante. Resulta, como o demonstrou Eco, em uma narrativa impossível, mesmo com a forma do relato realista. São impossibilidades temporais, e também, em outros de seus textos, espaciais: roteiros implausíveis de idas e vindas entre diferentes localidades, como em Angélique.

Relações de reflexão ou em eco, no interior da obra ou na relação entre várias obras, fazem que uma, sendo autônoma, também seja um comentário de outra. Em Angélique, primeira das narrativas de Les Filles du Feu, publicado em 1854, entrecruzam-se dois enredos: um deles na primeira pessoa, de um pesquisador que busca reconstituir a história do Abade de Bucquoy e descobre aquela de Angélique de Longeval; outro, a história reconstituída da própria Angélique. Mas a busca de informação sobre o Abade de Bucquoy já havia sido o tema de Les faux Saulniers, de 1850 (saulniers são trabalhadores em salinas); e os resultados da pesquisa acabariam dando em Histoire de l’Abbé de Bucquoy, de 1852, que integra Les Illuminés; de quebra, relatos de viagem em Les faux Saulniers seriam recortados e publicados em La Bohême Galante, também em 1852.

Há muito mais dessas manifestações de desprezo pela unidade da obra em Nerval, tornando-o mestre da interpolação, de encadeamentos narrativos que justificam ele apontar Lawrence Sterne, o autor de Tristan Shandy, como uma de suas leituras.

Tais ecos e abismos, dentro das narrativas e também entre elas, tornam Nerval, ao mesmo tempo que tão tradicionalista em sua busca de dois passados ou tempos perdidos, aquele da sua própria vida e outro arcaico, um autor moderno.

A dualidade metafísica e duplicidade literária podem, é claro, ser interpretadas psicologicamente: quando criou essas obras mais complexas, já estava louco, pois vinha tendo crises desde 1841. Mas, ao mesmo tempo, é consistentemente hermético: são sempre as correspondências, as relações analógicas entre diferentes planos de realidade e esferas simbólicas, que valem.

Esta observação de Steinmetz sobre As Quimeras serve para o conjunto da sua obra: […] somos mergulhados em um universo semântico da repetição, da reduplicação, da obsessão. [20] Uma das conseqüências foi seu abandono pela crítica, observado por Guillaume e Pichois no prefácio da edição de 1989 da Oeuvre Complète, cuja organização é por eles tachada de infernal: Gérard de Nerval não teve a chance de seus contemporâneos que encontraram, ao final do século XIX, exegetas tão dedicados quanto competentes. Sua obra foi como que deixada ao abandono. [21] Em outras palavras: faltou-lhe um Walter Benjamin.

A dualidade não apenas foi escrita, mas foi vivida por Nerval. Daí a sensação de ser dois, um e outro, atestada pela escolha do pseudônimo ao passar a designar-se a partir de 1838 como Nerval e não mais como Labrunie, seu nome de batismo, e documentada na foto em que anotou: eu sou um outro, publicada por Richer em Gérard de Nerval et les doctrines ésotériques (que seria interpretada de modo cabalístico por Breton em Arcano 17). Dela resultaram as dramáticas passagens de Aurélia em que se defronta com o duplo: seu perseguidor. Ou a epígrafe de Pandora, tirada do Fausto de Goethe:

Duas almas, ai de mim! Repartiam meu seio, e cada uma delas quer separar-se da outra: uma, ardente de amor, se apega ao mundo por meio dos órgãos do corpo; um movimento sobrenatural arrasta a outra para longe das trevas, rumo às elevadas moradas de nossos ancestrais. [22]

* * *

Se foi dúplice ao tratar de si, foi ao mesmo tempo uno e múltiplo em sua relação com mulheres, ou com a mulher. Seu culto a um princípio feminino, correspondente à amada perdida e à mãe que não tivera, por sua vez equivalentes a Isis, a todas as demais deusas e arquétipos, inclusive a Virgem e santas cristãs, confundia-as com as mulheres que realmente conheceu. Conforme Richer,

Isis é dita deusa polimorfa, deusa dos mil nomes.

Ora, em diversos lugares de sua obra, Nerval se compraz a enumerar os nomes da Deusa. No capítulo “As Três Vênus” de Viagem ao Oriente, ele a nomeia Minerva, Vênus, Perséfone, Diana, Afrodite, Panágia, etc. No relato do “Templo de Ísis” ele dá uma primeira lista (Ísis, Vênus, Urânia ou Ceres, Cibele), depois cita Apuleio (a citação comporta os nomes de Ísis, Minerva, Vênus Páfia, Juno, Proserpina, Estigiana, Ceres, Diana, Diotina, Belona, Hécate, Nêmesis, Cibele). [23]

São mulheres que, ao mesmo tempo, se confundem e desdobram: todas podem ser Vênus; mas Vênus é três.

A multiplicidade de figuras femininas é uma aplicação coerente do princípio hermético das correspondências universais. Se tudo se corresponde, então se equivalem as divindades desse conjunto e suas contrapartidas terrestres: Jenny Colon, as demais mulheres de sua vida, as personagens de ficção: Aurélia, Pandora, as “filhas do fogo” Sílvia, Angélica, Jemmy, Otávia, Emília etc, e as mulheres lendárias, Melusina, Pandora, Lorely.

* * *

Aurélia é tido como o documento da loucura de Nerval, sua obra delirante. Mas Steinmetz observa que Nerval também estava louco ao escrever As Quimeras: Até onde se sabe, a maior parte dos manuscritos de As Quimeras coincide com momentos de loucura. [24] Sonetos tão perfeitos, representando um pólo da condensação, coincidirem com surtos, inspira reflexões sobre as relações entre loucura e criação poética.

As Quimeras é poesia na primeira pessoa. Nerval não se duplicou; apresentou-se como um só: ele mesmo, em tom confessional. Mas esse “um” que se manifesta através dos poemas é ao mesmo tempo tudo: chama a atenção como nos doze sonetos (ou vinte, conforme a edição), foi capaz de evocar tamanha diversidade de símbolos, entidades mitológicas, personagens históricos, lugares, referências literárias.

Mas não são as mesmas crenças, o mesmo esoterismo e a mesma visão de mundo que se expressam através dos principais poemas desse livro.

Em El desdichado, que abre As Quimeras, é o autor a apresentar-se, declarando-se um exilado no mundo:

Sou o tenebroso – o viúvo – o inconsolado,
O príncipe na torre abolida de Aquitânia;
Morta minh’única estrela – meu alaúde constelado
Porta o Sol negro da Melancolia. [25]

O restante do poema é invocação da amada, tu que me consolaste, terminando com a declaração de que, Orfeu reencarnado, foi procurá-la no reino dos mortos:

Na noite tumular, tu que me consolaste,
Traga-me o Pausílipo e o mar d’Itália,
A flor que agradava tanto ao meu coração triste,
E o parreiral onde o pâmpano à rosa se alia.

Serei Amor ou Febo? … Lusignam ou Byron? [26]
Minha fronte está rubra, ainda, dos beijos da que reina;
Sonhei na gruta em que nada a sirena,

E por duas vezes, vencedor, atravessei o Aqueron:
Modulando alternadamente na lira Orféica,
Os suspiros da santa e os gritos feéricos. [27]

Em Sol Negro - Melancolia e Depressão, Julia Kristeva mostra que os primeiros versos de El desdichado seguem a ordem de cartas do Tarô. O tenebroso seria o arcano 15, o diabo; a torre abolida, desabada, o arcano 16; a estrela, aquela do arcano 17, da esperança.

É como se o poeta jogasse para tirar a sorte, e recebesse como resposta o arcano 16, da torre fulminada por um raio: o anúncio da sua destruição. Interessa a seqüência das cartas no jogo do tarô: o 16, símbolo da destruição, segue aquela do diabo; portanto, o colapso da torre (do consulente) é manifestação demoníaca; mas a torre fulminada precede o arcano 17, por sua vez título de uma obra de Breton: é a estrela da manhã, símbolo de um nascimento, da esperança no futuro e do conhecimento, [28] ou seja, da gnose; para Breton em Arcano 17, o emblema do triunfo de Lúcifer. A seqüência do jogo divinatório contém, portanto, uma teoria dos contrários.

El desdichado tem mais de um sentido: anuncia uma tragédia pessoal, a destruição do próprio poeta; e proclama duas vitórias sobre a morte, associadas à conquista do conhecimento e à eternidade do amor. E dá uma boa amostra do que Nerval exige de seu leitor, pelo cruzamento de símbolos de diferentes esferas. Começa pelo título: desdichado é desafortunado, infeliz, em espanhol; mas o título de Nerval se refere a um personagem de Ivanhoé, o romance de cavalaria de Walter Scott: esse desdichado, segundo Scott, significaria deserdado. Como assinala Steinmetz, Nerval seguiu o erro cometido por W. Scott; [29] e o poema não se refere apenas a alguém infeliz ou vítima da má sorte, mas a um deserdado: ao próprio Nerval.

Para a boa interpretação de apenas um dos versos – Serei Amor ou Febo? … Lusignam ou Biron? – o leitor precisaria saber, não só que Febo é Apolo, deus solar da inspiração poética, mas que Lusignan, um cruzado que se tornou rei de Jerusalém e Chipre no século XII, era tido como descendente da fada-serpente Melusina (também evocada por Breton em Arcano 17); e que Biron foi Charles de Gontaut, duque de Biron, decapitado em 1602, e não o lorde e poeta romântico inglês. [30] Assim ficaria claro o jogo de Nerval entre mitologia e história, ao apresentar-se como descendente de uma nobreza deserdada, os Labrunie, cujo castelo desabou, e por ser da estirpe maldita dos filhos de Caim. Ainda permaneceriam dúvidas: o Pausilípo da segunda estrofe é a baía do Posilipo em Nápoles – mas está lá por ter sido onde o poeta teve um encontro amoroso em uma de suas viagens (como assinala Steinmetz), pelo significado mítico do lugar, como berço de Netuno (como interpreta Richer), ou por ter sido onde tentou o suicídio (como observa Kristeva)? Provavelmente pelas três razões, entre outras.

O Cristo no Horto das Oliveiras, série de cinco sonetos, trata, não mais de um drama pessoal, mas de uma tragédia universal. É de um pessimismo ainda mais acentuado que El desdichado, pois não há retorno dos infernos ou ressurreição. O Cristo crucificado exclama: Não há Deus! E vislumbra o universo: Abismo! abismo! abismo!/ Falta o deus a este altar onde, vítima, eu cismo…/ Não há Deus! Deus não é!’ E eles sempre dormindo! [31]

Júpiter, a quem Pilatos se dirige para indagar sobre Cristo – equiparado a Ícaro e Átis – é uma divindade silenciosa: Mas sempre se calou o oráculo invocado;/ Um só daria este arcano ao mundo desvendado:/ – Aquele que deu alma ao ser de lama fria. [32]

Tratando de O Cristo no Horto das Oliveiras em Os Filhos do Barro, Octavio Paz argumenta que o tema da morte de Deus, ilustrado por esse poema, não tem lugar nem no racionalismo ateu, nem no cristianismo:

O tema da morte de Deus é um tema romântico. Não é um tema filosófico, mas religioso. Para a razão, Deus existe ou não existe. No primeiro caso, não pode morrer, e no segundo, como pode morrer alguém que nunca existiu? […] Se alguém diz “Deus morreu”, anuncia um fato irrepetível: Deus morreu para sempre. Dentro da concepção do tempo como sucessão linear irreversível, a morte de Deus torna-se um acontecimento impensável. [33]

Cristo no Horto das Oliveiras representa o gnosticismo em sua versão mais dualista, nestes versos sobre o terrível mundo sub-celestial: Um arco-íris estranho olha o poço sombrio,/ Umbral do velho caos de onde o nada é o feitio,/ Espiral, que devora os Mundos e os Dias!. E supõe a equivalência de Júpiter – o deus invocado em Cristo no Horto das Oliveiras – a um demiurgo gnóstico. É o estranho sincretismo comentado por Steinmetz:

Com Nerval acha-se proferido, pela primeira vez antes de Nietzsche, um “Deus está morto”, aliás questionado no final do poema. A angústia ontológica, com efeito, se resolve no soneto final em um estranho sincretismo assimilando Jesus às grandes vítimas mitológicas punidas por terem querido ultrapassar os limites humanos. [34]

A interpretação do deus de Cristo no Horto das Oliveiras com demiurgo gnóstico é fortalecida pela comparação com outro dos sonetos de As Quimeras, Anteros. Nele, o poeta se declara um descendente de Caim – Tenho por vezes de Caim o implacável rubor –, além de surgido da raça de Anteu e inspirado pelo Vingador. Proclama-se, dirigindo-se a Jeová! O último, vencido por teu gênio,/ Que, do fundo dos infernos, gritava: “Ó tirania!”/ É meu avô Belus ou meu pai Dagon… [35]

É quase inevitável a comparação com um poema de Baudelaire, da série Revolta de As Flores do Mal, intitulado Abel e Caim. De modo até mais explícito, declarado, Baudelaire também tomou o partido de Caim contra Jeová.

Novamente, em Anteros, é como se todas as religiões fossem a mesma, ou como se houvesse uma simbologia universal, da qual religiões e mitos apresentariam versões: em Cristo no Horto das Oliveiras há personagens dos Evangelhos que se dirigem a Júpiter, e não a Jeová; em Anteros são personagens de um mito grego, dos titãs (a história de Anteu, o filho de Geia, morto por Hércules), que, ao se dirigirem a Jeová, invocam os deuses fenícios Belus e Dagon, cujos cultos foram combatidos pelos judeus, em vez de se dirigirem ao Júpiter que, no mito, havia fulminado os titãs.

Portanto, no intercâmbio de mitos em Anteros e Cristo no Horto das Oliveiras é possível observar o deslocamento, com Jeová ocupando o lugar que deveria ser de Júpiter, e vice-versa. Isso, em poemas cuja característica é a condensação: dois mecanismos do sonho. Tais permutações, sendo oníricas ou delirantes, também são naturais para o adepto do esoterismo: este supõe a permutabilidade dos símbolos, manifestações aparentes ou faces visíveis dos arquétipos. É o que observa Steinmetz ao comparar Les Filles du Feu e As Quimeras: Nerval procede por deslocamentos, tomando exemplos no simbolismo universal, do qual sua história seria apenas uma parcela, um fragmento. [36]

Mas o importante em Anteros é que, conforme apontado por Richer, [37] esse poema se enquadra na moldura gnóstica sob dois aspectos decisivos. Um deles, ao identificar Jeová-Júpiter a um deus opressor; outro, ao declarar-se (presumindo que Anteros seja o alter-ego do poeta) o membro de uma raça perseguida, aquela dos descendentes de Caim, eleitos gnósticos para os cainitas.

Cristo no Horto das Oliveiras e Anteros possibilitam avançar na discussão, não só do gnosticismo em Nerval, mas também da sua relação com o cristianismo. Steinmetz parece vê-lo como rebelde anti-monoteísta; portanto, anti-cristão:

[…] Cristo no Horto das Oliveiras constata o deserto dos céus, Deus morto ou indiferente, e alinha Jesus ao número das ilustres vítimas sacrificadas por causa de sua loucura sublime. Nenhum desses sonetos [de As Quimeras] traz a marca da adesão ao monoteísmo. Bem ao contrário, os deuses é que são lamentados, mesmo se, para explicar o sistema do mundo, Nerval pareça admitir a realidade de um criador, aquele que nos tirou do limo. […] O movimento de rebelião contra um poder paterno é constante – quer se trate de Kneph, “velho perverso”, ou de Jeová, verdadeiro tirano. […] As rosas dos santos são um insulto aos deuses antigos e a imprecação é feita pára que elas caiam do céu – neve vã. [38]

Por isso, Nerval proclama a permanência de uma luta entre uma ordem antiga que eles [os deuses da Antiguidade] simbolizam e uma era futura referida ao monoteísmo. Nessa e em outras de suas notas para as Oeuvres Complètes, Steinmetz politiza Nerval, e por conseqüência o gnosticismo, ao salientar seu anti-autoritarismo, sua rebelião contra o Pai, bem como sua luta entre uma ordem antiga e uma era futura.

Em um dos sonetos da série complementar de As Quimeras, A J-y Colona, Nerval lamenta o fim do mundo pagão: os deuses de argila de um Templo, de imenso peristilo, foram destruídos por um Duque Normando; porém, sob as palmas do túmulo de Virgílio/ A pálida hortênsia se une ao loureiro verde. [39] Nesse poema, condensa As Quimeras: os sonetos são lamentações pela perda, não só da amada, mas do tempo em que os mitos eram verdadeiros; subsiste, porém, a esperança em uma união ou síntese, que permitirá o reflorescimento do paganismo.

Aceita a caracterização do rebelde por Paz (examinada no final do Capítulo 4º) como aquele que procura restaurar os mitos, então Nerval, com sua loucura teomaníaca, como a classifica Steinmetz, [40] foi o rebelde romântico por excelência.

Ártemis, outro dos poemas com simbologia numérica e do tarô em As Quimeras, [41] também é sombrio, na mesma tonalidade de El Desdichado. Desde a frase incial: A Décima-Terceira volta… E ainda é a primeira, é sobre um fim que é um recomeço, pois o treze, no tarô, é o arcano da morte, a carta do ceifador, assim como a Ártemis do título, Diana, uma deusa tutelar da morte. Por isso, proclama-a Rainha e A única que amei e que ainda me ama constante:/ É a Morte – ou a Morta. Jenny Colon, no sincretismo nervaliano, é Ártemis e a mártir napolitana Santa Gudula: uma deusa da morte e uma santa que foi morta. O amor, reunião ao arquétipo feminino, só se realiza pela morte: por isso, Ártemis é mais um dos textos de Nerval que anunciam o suicídio, porém confiando em um retorno, na síntese de Eros e Tânatos.

Se O Cristo no Horto das Oliveiras pode ser considerado sombrio, noturno, Versos Dourados é solar. Expressa a crença na religião da natureza, na sacralidade cósmica: é a visão panteísta de um mundo vivo. Desde a epígrafe atribuída a Pitágoras – Céus! tudo é sensível –sustenta que o ser humano é parte de um todo:

Homem! livre pensador! serás o único que pensa
Neste mundo onde a vida cintila em cada ente?
De tuas forças tua liberdade dispõe naturalmente,
Mas teus conselhos todos o universo dispensa.

Honra na fera o espírito que fermenta…
Cada flor é uma alma em Natura nascente;
Um mistério de amor no metal reside dormente;
“Tudo é sensível!” E poderoso em teu ser se apresenta.

Receia, no muro cego, um olhar curioso:
À própria matéria encontra-se um verbo unido…
Não te sirvas dela para qualquer fim impiedoso!

Quase sempre no ser obscuro mora um Deus escondido.
E, como um olho novo coberto por suas pálpebras,
Um espírito puro medra sob a crosta das pedras! [42]

Contador Borges o qualifica como soneto pitagórico que anuncia o tema das “correspondências” em Baudelaire. Propõe, ainda, uma interpretação alquímica de Aurélia: Ambos [Versos Dourados e Aurélia] aludem à busca do conhecimento através da “pedra filosofal” da Alquimia, ambos derivam nos títulos de aurum. [43] Mas toda obra situável no quadro do gnosticismo e do hermetismo também o é naquele da alquimia. Inclusive o que El Desdichado tem de soturno pode ser entendido como correspondendo ao nigredo, à primeira etapa da operação cuja culminância seria representada por Versos Dourados, por isso posto no final do livro.

Leitores de Nerval já comentaram Versos Dourados. Dentre eles, Breton em Do Surrealismo em suas Obras Vivas, para afirmar a mesma crença hermética nas correspondências entre macrocosmo e microcosmo. Octavio Paz também se refere a Versos Dourados em Leitura e Contemplação, ensaio sobre glossolalias e o “falar em línguas”. [44] Entende o tudo é sensível da epígrafe do poema como equivalente a tudo é significativo: o universo todo, o conjunto das coisas, é linguagem, inteligível pelo iluminado capaz de ler as assinaturas divinas, as marcas do macrocosmo em cada particular. É a língua adâmica; aquela da Idade do Ouro, do tempo anterior à queda. O poeta é, portanto, quem traduz a simbologia universal. O entendimento do poeta como tradutor do universo ainda viria a ser claramente apresentada por Baudelaire; isso, lembrando que ambos, Nerval e Baudelaire, foram tradutores.

Versos Dourados, ao fechar As Quimeras, possibilitou que a série fosse de doze poemas. A cifra doze significa a completude, o fim de um ciclo: no tarô, é a carta do enforcado ou pendurado, representando um sacrifício e também um pronunciamento divino: a Lei revelada. Nerval quis encerrar com o poema sobre o mundo paradisíaco anterior à queda, ao qual chegaria após a descida aos infernos, completando o percurso iniciático: o mesmo enredo de Aurélia.

Em As Quimeras não apenas combinam-se acontecimentos históricos, da queda de Roma à derrota de Napoleão, às mitologias egípcia, grega, indiana, escandinava, além de referências à Bíblia, aos apócrifos judaicos e ao Alcorão. A geografia também é sincretizada: A Madame Aguado e Eritréia, poemas em que descreve paradisíacas paisagens orientais, situam Benares, cidade da Índia, na africana Eritréia; em ambos repete a imagem da neve de Cathay (a China) que cai no Atlântico austero, [45] e não, como deveria ser, no Índico ou no Pacífico. Por isso, vale para As Quimeras um comentário de Richer a propósito de Voyage em Orient: Seu desprezo, ou melhor, sua ignorância soberba da história e da cronologia não passam de um aspecto desse desprezo pelo tempo que transparece em todas as suas obras. [46]

Há desprezo pelo tempo e pelo espaço porque os poemas são expressões do pensamento analógico. Nerval não separa ordens de realidade ou campos do saber: tudo se encadeia e corresponde. Por essa lógica, no poema Napoleão o imperador é um messias sacrificado e um avatar, comparado a Cristo e ao Set gnóstico.

É um inadmissível chavão classificar poetas como “difíceis”. Afinal, qualidade poética supõe algo como espessura, profundidade ou densidade. Quem quiser emitir mensagens imediatamente inteligíveis, que se valha do modo prosaico. Contudo, mesmo com essa ressalva, As Quimeras é poesia especialmente difícil – algo que Nerval sabia, observando, na carta a Alexandre Dumas que abre Les Filles du Feu, que seus sonetos, compostos em estado de sonho supernaturalista, […] não são mais obscuros que a metafísica de Hegel e os Memoráveis de Swedenborg, e perderiam seu encanto ao serem explicados, se isso fosse possível. [47]

E mais: sobrepõem-se dificuldades. Uma delas, pelo simbolismo. Seria preciso saber os sentidos de todos os símbolos empregados por Nerval: aqueles esotéricos e mágicos, astrológicos, alquímicos e de outras ramificações do hermetismo; e as alusões históricas, genealógicas e literárias. Outra dificuldade é pelo embaralhamento a que procede, ampliando e multiplicando tais sentidos para além de suas matrizes ou lugares originais. É a confusão de todos os arquétipos, em uma corrida alucinada de todas as analogias, como observa Bueno no prefácio de As Quimeras. [48]

Aceita a distinção entre um simbolismo esotérico, escrita cifrada, e um simbolismo literário, que proclama a autonomia do símbolo, então Nerval foi ao mesmo tempo expoente do simbolismo esotérico e iniciador do simbolismo literário. Isso é reconhecido por Guillaume na introdução às Oeuvres Complètes: seus primeiros poemas, as Odelettes, anunciam Verlaine, além dos sonetos que, bem antes de Mallarmé, buscam e conseguem incorporar a si a música. [49] E por Béguin, pelo caráter “simbólico” e alusivo que logo definirá toda a poesia pós-baudelairiana. [50] E ainda praticou simbolismo literário com simbologia esotérica: um duplo simbolismo.

Vale para As Quimeras e boa parte da obra nervaliana o comentário de Kristeva sobre o eclipse do sentido e a multivalência de conotações em El desdichado:

[..] essas referências [aquelas simbólicas, esotéricas], que constituem a ideologia de Nerval, estão inseridas numa trama poética: desenraizadas, transpostas, elas obtêm uma multivalência de conotações, em geral, indefinidas. A polivalência do simbolismo no interior dessa nova ordem simbólica que é o poema, ligada à rigidez dos símbolos no seio das doutrinas esotéricas, confere à linguagem de Nerval um duplo privilégio: por um lado, assegurar um sentido estável tanto quanto uma comunidade secreta, onde o inconsolado é ouvido, aceito, e, em suma, consolado; por outro, abandonar esse sentido monovalente e essa própria comunidade, para chegar o mais próximo possível do objeto do pesar especificamente nervaliano, através da incerteza da nomeação. [51]

Em outras palavras: Nerval usou o vocabulário esotérico, mas se expressou como poeta. A simbologia é constitutiva do sentido do poema; mas é refeita, produzindo novos sentidos, e mais: o que está além da relação de significação.

* * *

Hermetismo e gnosticismo, não-linearidade, incertezas da nomeação, desprezo por princípios da lógica e parâmetros da realidade: tudo isso reaparece de modo paroxístico em Aurélia. Nerval quis, expressamente, relatar a efusão do sonho na vida real, [52] o modo como o onírico transborda, ultrapassa limites. Começa com esta frase: O sonho é uma segunda vida. A declaração poderia ser epígrafe de um surrealista como Robert Desnos. A defesa do sonho por Breton, no primeiro Manifesto do Surrealismo, é uma paráfrase do que Nerval diz em Aurélia. Mas ele sabia que não estava apenas a sonhar. Seu estado era outro, de sobreposição do sonho e da vigília. Através da rêverie, de um estado análogo àquele em que Swedenborg viajava pelo cosmos, sonhava e estava desperto. Por ser narrativa onírica, predomina um princípio da mutação: Tudo transformava-se ao meu redor. […] A partir desse momento, tudo adquiria por vezes um aspecto duplo. Pretendia, nessa nova vida – em uma das suas alusões a Dante, indicando que Aurélia é uma Divina Comédia caótica – chegar à síntese, ao conhecimento superior que possibilitaria a compreensão do mundo, de sua origem e fim, e do seu próprio destino no mundo. A gnose alcançada nesse estado também lhe permitiria ordenar a babel bibliográfica através da qual se havia formado:

Meus livros, uma estranha pilha da ciência de todos os tempos: história, viagens, religiões, cabala, astrologia, que alegraria as sombras de Pico de la Mirandola, do sábio Meursius e de Nicolau de Cusa – a torre de Babel em duzentos volumes – deixaram-me tudo isso! Havia bastante para tornar louco um sábio; façamos com que também haja o suficiente para tornar sábio um louco.

Tal síntese exigia a formulação de um mito, a exemplo dos profetas da Antiguidade. Nele, articulam-se a visão hermética e gnóstica do mundo. Do hermetismo, é repetidamente afirmado o princípio das correspondências: O macrocosmo, ou grande mundo, foi construído pela arte cabalística; o microcosmo, ou pequeno mundo, é sua imagem refletida em todos os corações. Menciona a Tábua Esmeralda, documento-chave do hermetismo: Eu tentara reunir as pedras da Tábua sagrada, e representar em volta os sete primeiros Elohim que haviam repartido o mundo entre si. Note-se, nessa frase, a fusão de duas mitologias, ou duas doutrinas: a repartição do mundo por anjos ou arcontes, exposta no Livro de Enoch e adotada por Simão o Mago e demais gnósticos, é estranha à Tábua Esmeralda, proclamação da sincronia entre mundo e divindade.

Da doutrina das correspondências advém que somos deuses, ou quiçá sejamos Deus, conforme o relato de um sonho por um amigo e companheiro de hospício, que poderia ser um comentário ou paráfrase de Versos Dourados:

[…] um sonho sublime nos mais vagos espaços do infinito, uma conversa com um ser ao mesmo tempo diferente e participante dele mesmo, e a quem, dando-se por morto, ele indagava do paradeiro de Deus. “Mas Deus está em toda parte”, respondeu seu espírito; “ele está em ti mesmo e em todos. Ele te julga, ouve, aconselha: somos tu e Eu que pensamos e sonhamos juntos – nós jamais nos abandonamos… e somos eternos!”

Há, portanto, um trânsito do macrocosmo para o microcosmo, do infinito para o finito, e vice-versa: segundo penso, os eventos terrestres estão ligados aos do mundo invisível. Trata-se de uma dessas relações estranhas das quais eu mesmo não me dou conta, e que são mais fáceis de indicar que de definir…

Uma das conseqüências dessas relações estranhas é a consubstancialidade em sua versão mais ampla, como participação de tudo em tudo, afirmada nesta passagem: Diz-se com propriedade: nada é indiferente no mundo, nada é impotente no universo; um átomo pode dissolver tudo, um átomo pode salvar tudo! Não apenas os planetas regem o mundo, como na astrologia clássica; reciprocamente, o movimento humano dirige os planetas:

Imaginei a princípio que todas as pessoas reunidas no jardim tinham, alguma influência sobre os astros, e que aquele que girava incessantemente no mesmo círculo regrava dali a marcha do Sol. Um velho que traziam em certas horas do dia e que fazia nós consultando seu relógio era, para mim, o encarregado de constatar a marcha das horas. Atribuí a mim mesmo uma influência sobre o curso da Lua; acreditei que esse astro fora atingido por um raio do Todo-Poderoso que imprimira em sua face a forma da máscara observada por mim.

A interdependência de macrocosmo e microcosmo adquire um tom dramático na cena em que encontra e logo perde de vista a mulher misteriosa em um jardim. É a mulher-mundo, e sua desaparição equivale ao fim do mundo:

Aos poucos o jardim adquiria-lhe a forma [da mulher misteriosa] […] Eu a perdia assim de vista à medida que se transfigurava, pois ela parecia esvanecer-se na própria grandeza. “Oh! Não fujas! supliquei… senão a natureza morre contigo1” […] passando os olhos à minha volta, vi que o jardim tomara o aspecto de um cemitério. Vozes diziam: “O universo está dentro da noite!”

Se o macrocosmo e o microcosmo, o ser humano e o universo, se correspondem de modo recíproco, então, nesta versão trágica do idealismo mágico de Novalis, a desaparição de uma pessoa acarreta o fim do mundo. A filosofia da natureza dos românticos, sintetizando ciência e religião, torna-se narrativa de horror:

Os raios magnéticos emanados de mim mesmo ou dos outros atravessam sem obstáculos a cadeia das coisas criadas; uma rede translúcida cobre o mundo, e seus fios soltos comunicam-se gradualmente com os planetas e as estrelas. […] Se a eletricidade, o magnetismo dos corpos físicos, pensei, pode submeter-se a uma direção imposta por leis, tanto mais os espíritos hostis e tirânicos podem subjugar as inteligências e se servirem de suas forças divididas com objetivo de dominação.

Aurélia pode ser lido como o equivalente, por um poeta romântico, do culto à serpente dos ofitas e naassenos: A serpente que envolve o Mundo é ela própria abençoada, porque afrouxa seus anéis, e sua bocarra aspira a flor de anxoka, a flor sulfúrea – a flor brilhante do Sol! Seu mito da origem é uma espécie de história do mundo misturada com lembranças de estudos e fragmentos de sonhos. O drama cósmico do qual resultou o mundo ocorre em outro lugar: em um planeta obscuro onde se debatiam os primeiros germes da criação. A queda desse planeta obscuro é um movimento perpetuamente descendente: E, com efeito, eu via, resvalando por um vão da porta numa linha de sombra, a geração descendente das raças futuras.

Em conseqüência, o futuro sempre será pior: é a visão gnóstica do tempo, oposta à crença na evolução e em uma lógica da história.

Assim como em apócrifos da Antigüidade, a origem é um erro. Ou então, na origem da vida está o erro, e não o Verbo, o logos. Ou ainda, o logos, porém enunciado de modo errado: Houve, a meu ver, um erro na combinação geral dos números; e vinham de lá todos os males da humanidade. É a fórmula cabalística: se a enunciação correta do nome de Deus cria o mundo, então a enunciação errada acarreta sua destruição. Nerval deu um complemento romântico a esse princípio, ao afirmar que o poeta, mago e novo messias, enunciará as palavras corretas: Eu parecia ter a função de restabelecer a harmonia universal pela arte cabalística e de buscar uma solução evocando as forças ocultas das diversas religiões.

Não poderiam faltar a esse drama os arcontes; os Elohim, na versão de Nerval. É registrada a impotência de Deus, o deus de Lucrécio impotente e perdido em sua imensidão. Reitera O Cristo no Horto das Oliveiras, porém, desta vez, inserindo a proclamação da morte de Deus em uma cosmogonia complexa.

Outro mito que reaparece é o da divindade feminina, a deusa radiante. Geratriz do mundo caída, é Isis, Vênus, a Virgem Maria: todas as deusas. E também Aurélia: à maneira de Simão o Mago, confere estatuto divino a Jenny Colon. A reintegração é união com o princípio feminino, a esposa-mãe ausente. Mas essa união falha por intervenção do outro, do duplo maligno. Acontece uma troca na câmara nupcial, e quem acaba se unindo a Aurélia-Isis-Vênus-Maria-Jenny é a alma adventícia, e não o “eu” verdadeiro:

Falava-se de um casamento e do noivo que, conforme diziam, devia chegar para anunciar o momento da festa. Um arrebatamento insano logo apoderou-se de mim. Imaginando tratar-se daquele que era meu Duplo, e que deveria desposar Aurélia, fiz um escândalo que pareceu consternar a assembléia.

Aurélia é a história da cisão do andrógino. Para resgatar a contrapartida feminina, a exemplo de Orfeu, patrono dos poetas, terá que descer ao reino dos mortos. Por isso, a segunda parte do livro se intitula Eurídice! Eurídice! Paz, conforme citado acima, observou que Nerval, em O Cristo no Horto das Oliveiras, transformou um sonho em mito. Foi mais longe, porém: transformou tudo em mito; não apenas o conjunto dos episódios de sua vida, como sua morte; suicidando-se, foi Orfeu.

* * *

A relação entre a conduta de Nerval e aquilo que escrevia foi romantismo levado a sério: o compromisso total com valores românticos. A semelhança do que é exposto em Aurélia com relação ao idealismo mágico de Novalis é evidente; mas é como se a mesma busca da síntese terminasse em catástrofe; como se Heinrich von Ofterdingen não chegasse a lugar algum, ou a investigação dos discípulos de Saïs desembocasse em um solipsismo, ou o elogio da morte nos Hinos à Noite fosse seguido ao pé da letra.

Em Aurélia, Nerval transformou um drama pessoal em tragédia. Nisso reproduziu uma lógica romântica, evidente em autores tão diversos como Novalis e Victor Hugo: se o macrocosmo e o microcosmo são articulados, então dramas pessoais – a perda de Sophie e Erasmus em Novalis, as mortes dos filhos em Victor Hugo, a orfandade e a perda de Aurélia em Nerval – correspondem a acontecimentos cósmicos; e ao mesmo tempo refletem-se, pela lógica da consubstancialidade, na esfera cósmica.

Baudelaire, em um dos seus prefácios a Poe, havia designado o suicídio de Nerval como gesto de lucidez. Para Kristeva,

A melancolia motiva a “crise de valores” que sacode o século XIX e que se exprime na proliferação esotérica. A herança do catolicismo encontra-se questionada, mas seus elementos relativos aos estados de crise psíquica são retomados e inseridos num sincretismo espiritualista polimorfo e polivalente. [53]

No entanto, isso já caracterizava a cultura da segunda metade do século XVII; termos como proliferação esotérica e sincretismo espiritualista aplicam-se tão bem a Blake e Novalis quanto a Nerval. Mas o que não se enxerga em Blake, e não se vê em uma versão tão extrema em Novalis, é a melancolia: Blake e Novalis parecem monistas que tomam o dualismo como caso particular; em Nerval, o quadro de referências é todo dualista, e a visão de mundo monista é uma possibilidade futura.

O intervalo temporal que separa Nerval de Novalis e Blake corresponde à perda das ilusões; ao desvanecer-se de uma visão de mundo otimista. Para a primeira geração romântica, acontecimentos como a Independência norte-americana e a Revolução francesa davam sentido à história. Justificavam esperanças em uma Europa que se reconstruía após a Guerra dos Sete Anos e poderia chegar a ser a Jerusalém ou Golgonooza de Blake, a cristandade restaurada de Novalis. A geração de Nerval presenciou o colapso de um império, uma restauração monárquica e duas revoltas derrotadas, as de 1830 e 1848.

O futuro fechava-se para Nerval e seus pares. Não lhe oferecia muito mais que a consolidação da sociedade burguesa naquele ambiente de reação conservadora. Guillaume e Pichois comentam, nas Oeuvres Complètes, os meses de incerteza e medo em 1850, ilustrados por este comentário de Máxime Du Camp: Literariamente falando: nada, calma platitude; em todo lugar o tédio dominante, indiferença por todas as coisas que não tocam diretamente ao interesse material; está bugremente morto o tempo dos entusiasmos. [54]

O mesmo ambiente de calma platitude e tédio dominante exasperava Baudelaire, levando-o a afirmar, no poema-abertura de As Flores do Mal, que nada podia ser pior nem mais infernal que o tédio; e, em 1857, dois anos após a morte de Nerval, em seu texto sobre Madame Bovary de Flaubert, a diagnosticar uma sociedade absolutamente embotada – pior que embotada –, embrutecida e gulosa, que não sentia horror senão pela ficção nem amor senão pela posse. [55]

Nerval e Baudelaire se tocam. Se desprezássemos a cronologia, Nerval poderia passar por baudelairiano. Surpreende como tiveram pouco contato. Nerval não tomou conhecimento de Baudelaire, apesar de freqüentarem os mesmos lugares e terem os mesmos amigos. Baudelaire só se referiu a Nerval em duas ocasiões: a primeira, depreciativamente, e a segunda para elogiar seu suicídio.

Há outros pontos de contato: ambos foram atingidos pela censura que se acirrou no pós-1848, com o Segundo Império. Entre suas conseqüências, a interdição de As Flores do Mal e de vários textos de Nerval, levando-o a desistir de projetos teatrais. Isso, conforme registrado pelos organizadores das Oeuvres Complètes, em meio a destituições de funcionários públicos e toda sorte de proibições; até mesmo de usarem barba (mostrando que a repressão visou os rebeldes românticos e não só os revolucionários socialistas, assim como, mais tarde, seriam perseguidos hippies e não só militantes).

Com todo o bucolismo de Nerval, sua rememoração de uma idílica vida campestre, algo frontalmente negado por Baudelaire, ainda há paralelos possíveis na relação de ambos com Paris. Nerval também foi flâneur, conforme registrou nas crônicas de Les Nuits d’Octobre, algumas delas perfeitamente compatíveis com O Spleen de Paris – Pequenos Poemas em Prosa. E suas viagens tiveram algo de flânerie intercontinental, e não mais apenas parisiense.

As reformas de Paris a partir de 1848, com a destruição que precedeu a abertura dos grandes bulevares, embora sejam um dado mais importante para a interpretação de Baudelaire, também afetaram Nerval. Tiveram um efeito mais direto: por causa delas, foi desalojado, expulso de onde morava em 1850, para nunca mais ter domicílio fixo.

O estreitamento das perspectivas de Nerval e seus contemporâneos não foi apenas político. Em meados do século XIX, saíam do horizonte as possibilidades da realização do conhecimento total, da grande integração e síntese, reconciliando religião e ciência, misticismo e racionalismo. A filosofia romântica dos Schelling e Schlegel caía em desgraça. Na razão direta da perda de prestígio dos Werner e Ritter, das doutrinas vitalistas e organicistas na ciência, o determinismo tomava conta da cena, agora com um novo porta-voz, Augusto Comte, sistematizador e arauto do positivismo. Enfim, tudo parecia dar razão à premissa gnóstica adotada por ambos, Nerval e Baudelaire, de que o Tempo é uma via descendente, ao longo da qual tudo inexoravelmente tende a piorar.

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