Tuesday, September 30, 2008

ARQUÍLOCO


Soldado e poeta1
E eu, que sou um servidor do Senhor da Batalha
também sou versado no amável dom das Musas.

[Archil.Fr. 1 West]

A lança
Para mim, na lança o pão sovado; na lança, o vinho
ismárico; e eu bebo na lança apoiado.

[Archil.Fr. 2 West]

Poeta satírico
e eu sei uma coisa importante,
a quem age mal comigo, dou em troca terríveis males.


[Archil.Fr. 166 West]

Ou mato ou morro
um dos Saios enfeita-se agora com o belo escudo que junto
a um arbusto atirei contra a vontade,
salvando a vida. Que me importa aquele escudo?
Dane-se! Comprarei um novo que não será pior.

[Archil.Fr. 5 West]

http://greciaantiga.org/lit/pt

Sunday, September 28, 2008

HAKIM BEY


«OS TONG

[…]
No Inverno passado li um livro sobre os Tong chineses (Primitive Revolutionaries of China: A Study of Secret Societies in the Late 19th Century, de Fei-Ling Davis) – talvez o primeiro escrito por alguém que não foi agente dos serviços secretos brritânicos! (na verdade, trata-se de uma socialista chinesa que morreu jovem – foi este o seu único livro) – e percebi pela primeira vez por que sempre me senti atraído pelos Tong: não apenas pelo romantismo, ou pelo elegante cenário da decadência chinesa, que lá estão – mas também pela forma, a estrutura, a própria essência da coisa.
Algum tempo depois, numa excelente entrevista de William Burroughs à revista Homocore, descobri que também ele se fascinara com os Tong e sugeria a sua forma como modo perfeito de organização para as bichas, sobretudo no actual período de histeria e moralismo merdosos. Acho que concordo, e estendo a recomendação a todos os grupos marginais, especialmente aqueles cuja fruição envolva qualquer ilegalidade (fumadores de erva, heréticos do sexo, insurreccionistas) ou alguma excentricidade extrema (nudistas, pagãos, artistas pós-vanguardistas, etc., etc.).
Os Tong podem talvez ser definidos como uma sociedade de benefício mútuo para pessoas com um interesse comum, que seja ilegal ou perigosamente marginal – daí o segredo necessário. Muitos dos Tong chineses tinham a ver com o contrabando e a evasão fiscal, ou com o domínio pessoal clandestino de certos comércios (em oposição ao controlo estatal), ou com objectivos de insurreição política ou religiosa (derrubar os Manchus, por exemplo – diversos Tong colaboraram com os anarquistas na Revolução de 1911). O propósito comum dos Tong era o de recolher os direitos de filiação e as jóias de inscrição e investi-los em fundos de apoio para os indigentes, desempregados, viúvas e órfãos dos membros falecidos, despesas de funeral, etc. Numa era como a nossa, quando os pobres ficam entre a espada cancerosa da indústria dos seguros e a parede do serviço público de saúde e assistência, que rapidamente se evapora, este propósito da sociedade secreta bem poderia recuperar todo o seu atractivo. (As lojas maçónicas foram organizadas nesta base, bem como os primeiros sindicatos ilegais e as "corporações de artífices" para trabalhadores e artesãos.) Um outro propósito universal de tais sociedades era evidentemente a convivialidade, e em especial os banquetes – mas mesmo este passatempo aparentemente inócuo pode revestir implicações insurreccionais. Nas várias revoluções francesas, por exemplo, as confrarias gastronómicas desempenhavam frequentemente o papel das organizações radicais quando todas as restantes formas de encontros públicos haviam sido banidas.
[…]
A estrita regra tradicional do segredo também precisa de ser modificada. Hoje em dia tudo o que escape ao olhar idiota da publicidade já é virtualmente um segredo. A maior parte das gentes modernas parece ser incapaz de crer na realidade de algo que nunca viu na televisão – por conseguinte, escapar ao televisionamento é já ser quase invisível. Além disso, aquilo que é visto através da mediação dos media torna-se de certa forma irreal e perde o seu poder. […] Em contraste, talvez aquilo que não é visto retenha a sua realidade, a sua raiz na vida quotidiana e, portanto, na possibilidade de maravilhamento.
[…] Muitas organizações não-autoritárias foram fundadas sobre o dúbio princípio da filiação aberta, que frequentemente conduz a uma preponderância de asnos, idiotas, salteadores, neurótticos e agentes policiais. Se os Tong se organizarem em torno de um interesse especial (nomeadamente um interesse ilegal, ou arriscado, ou marginal) terão certamente o direito de se acomodarem segundo esse princípio de "grupo de afinidade". Se o segredo significar a) evitar a publicidade, e b) vetar possíveis membros, a "sociedade secreta" dificilmente poderá ser acusada de violar os princípios anarquistas. Efectivamente, tais sociedades possuem uma longa e honrosa história no movimento anti-autoritário, desde o sonho de Proudhon, reanimar os tribunais nocturnos irregulares como forma de "justiça popular", até aos vários esquemas de Bakunine e à coluna de Durrutti. Não deveríamos permitir que os historiadores marxistas nos convençam de que tais expedientes são "primitivos" e foram, portanto, ultrapassados pela "História". O carácter absoluto da "História" é, quando muito, uma proposição dúbia. Não estamos interessados num retorno ao primitivo, mas num retorno do primitivo, atendendo a que o primitivo é o reprimido.
Nos velhos tempos as sociedades secretas surgiam em espaços e tempos proibidos pelo Estado, i. e., onde e quando as pessoas haviam sido afastadas pela lei. No nosso tempo, as pessoas não são habitualmente afastadas pela lei, mas pela mediação e a alienação. O segredo torna-se assim uma fuga à mediação, ao passo que a convivialidade passa de propósito secundário a primário na "sociedade secreta". Um simples encontro face a face é já uma acção contra as forças que nos oprimem por meio do isolamento, da solidão, pelo transe dos media.
Numa sociedade que obriga a uma ruptura esquizóide entre o Trabalho e o Lazer, todos nós experimentámos a trivialização do nosso "tempo livre", tempo que não está organizado como trabalho nem como lazer. ("Férias" significou outrora tempo vago – agora significa tempo organizado e preenchido pelo lazer industrial.) O propósito "secreto" da convivialidade na sociedade secreta transforma-se então na auto-estruturação e autovalorização do tempo livre. Boa parte das festas dedica-se apenas a música em alto volume e bebida em demasia, não porque o apreciemos mas porque o Império do Trabalho imbuiu em nós o sentimento de que tempo vago é tempo perdido. A ideia de convocar uma festa para, digamos, fazer uma colcha ou cantar madrigais em grupo parece irremediavelmente fora de moda. Mas os Tong modernos acharão simultaneamente necessário e agradável retirar o tempo livre ao domínio do mundo das mercadorias e devotá-lo à criação partilhada, à brincadeira.
Conheço já diversas sociedades organizadas nestes termos, mas não irei certamente quebrar o seu segredo ao discuti-las aqui. Existem algumas pessoas que não precisam de quinze segundos no Jornal da Noite para validarem a sua existência. Evidentemente, de qualquer forma a imprensa e a rádio marginais (os únicos media em que este pequeno sermão irá aparecer) são praticamente invisíveis – certamente ainda muito opacas ao olhar do Controlo. No entanto, há o princípio da coisa: os segredos devem ser respeitados. Nem todos precisam saber tudo! Aquilo que mais falta ao século XX – e aquilo de que ele mais precisa – é tacto. Queremos substituir a epistemologia democrática pela epistemologia dadá. Ou se está no mesmo barco ou não se está no barco.
[…] O imediatismo não se preocupa com as relações de poder; nem deseja ser governado, nem governar. Por conseguinte, o Tong contemporâneo não aprecia a degenerescência das instituições em conspirações. Pretende poder para os seus próprios propósitos de mutualidade. É uma livre-associação de indivíduos que se escolheram mutuamente para sujeitos da generosidade do grupo, para a sua "expansividade" (para usarmos um termo Sufi). Se isto resulta em algum tipo de "elitismo", pois que o seja.
Se o Imediatismo começa com grupos de amigos que tentam não apenas vencer o isolamento mas também melhorar a vida de cada um, em breve pretenderá assumir uma forma mais complexa – núcleos de aliados mutuamente escolhidos, trabalhando (brincando) para ocupar cada vez mais tempo e espaço fora de todos os controlos e estruturas mediadas. Depois quererá transformar-se numa rede horizontal de semelhantes grupos autónomos – depois, numa "tendência" – depois, num "movimento" – e depois numa rede cinética de zonas autónomas temporárias [T.A.Z.]. Esforçar-se-á finalmente por se tornar no cerne de uma nova sociedade, fazendo-se nascer a si mesma dentro da casca corrupta da velha. Para todos estes propósitos, a sociedade secreta promete fornecer um enquadramento útil de clandestinidade protectora – um manto de invisibilidade que só terá de ser abandonado no caso de um confronto final com a Babilónia da Mediação…
Preparemo-nos para as Guerras Tong!»

[in Zona Autónoma Temporária: Lisboa, trad. Jorge P. Pires, frenesi, 2000]

Selecção de PCD

in http://frenesi-livros.blogspot.com

VACAS E COELHOS


Um dia numa floresta um coelho matou um homem. Uma vaca observava esperando que o homem se levantasse. Um insecto rastejou na cara do homem. Uma vaca observava esperando que o homem se levantasse. Uma vaca saltou uma sebe para ver mais de perto como um coelho arruma um homem. Um coelho ataca uma vaca pensando que a vaca veio ajudar o homem. O coelho domina a vaca e arrasta a vaca para a sua toca.

Quando a vaca desperta a vaca pensa, eu queria estar ao cimo da terra indo com o homem para o meu estábulo.

Mas a vaca permanece com estes orelhudos para o resto da vida.







Russel Edson, poeta norte-americano, nascido em 1935

(poema com tradução de José Alberto Oliveira)




Publicada por Ricardo Pulido Valente em 5:02 6 comentários
retirado de http://a-unica-real-tradicao-viva.blogspot.com

Wednesday, September 24, 2008

MANIFESTO DA CRIAÇÃO


Fino após fino vou bebendo. Os estudantes fardados celebram. Sinto saudades do meu tempo de estudante. Essa coisa de não estudar ou estudar muito pouco e ir beber copos com os amigos. As merdas culturais e políticas em que me meti. As noitadas. Houve muitos projectos por concluir, merdas quiméricas. O amor que ficou. A santa loucura como diz o AMR que vou ver amanhã. O regresso à Faculdade de Letras. O regresso em triunfo. Essas coisas todas. E o divino Ulisses. Ítaca que nunca mais vem. Os praxistas gritam lá fora. E os empresários da bola esfregam as mãos.
Eu deveria ser pago à letra. Olha o que te digo, deveria ser pago à letra. Qual a diferença entre fazer um verso e fazer uma finta? E as coisas grandes, realmente grandes, àparte as gajas boas, vêm do espírito, da alma. E as coisas realmente grandes, àparte as gajas boas, são criações do Poeta, do Artista. Quem foi o artista que criou as gajas boas? O Poeta é um privilegiado porque é um criador. Na sociedade do dinheiro deveria ser pago a peso de ouro. Deveria ser adorado como na Grécia e em Roma. Deveria ostentar a coroa de louros. Mas também deve gritar no meio da multidão, cantar a sua canção. O seu papel é agitar, provocar, mostrar o novo mundo. Não deve temer a loucura. Deve segui-la, amá-la até ao fim. Deve estar em pé de guerra, com intervalos para descansar. Deve ser imoderado em busca da sabedoria. Deve estar para lá dos bens materiais. Nunca deve mendigar. O único deus que respeita é o seu irmão Dionisos. Os outros são ficções. Deve dizer e fazer coisas incongruentes, non sense, para baralhar amigos e inimigos. Deve ter uma atitude de gozo perante a realidade. Deve situar-se além do bem e do mal e para lá de todos os preconceitos, como defendia Nietzsche. Deve cantar o caos. Deve amar loucamente a mulher amada, como preconizava Breton. Pode até divinizá-la , seja ela a empregada de mesa ou a "porno-star". Deve encarnecer, gozar com a sociedade-espectáculo, tanto com os produtores do espectáculo como com os batedores de palmas. Deve explorar todas as potencialidades da net e das Zonas Autónomas, à boa maneira de Hakim Bey. Deve ser um xamã, um profeta, um pirata, um filósofo, um provocador, um criador, um Homem Superior.

Porto, 24.9.2008
António Pedro Ribeiro

Tuesday, September 23, 2008

DADA NO BRASIL


Escolas Literárias > Dadaísmo

O movimento artístico mais contestador surgido na Europa e com claros reflexos no Brasil foi o Dadaísmo, criado em 1916, em Paris, por um grupo de refugiados alemães liderados por Tristan Tzara (1896-1963), poeta judeu-romeno-francês.

“Encontrei o nome casualmente ao meter uma espátula num volume fechado do Petit Larousse e, lendo, logo ao abrir o livro, a primeira palavra que me saltou à vista foi DADÁ.” Assim Tristan Tzara batizou o movimento.

O que quer dizer “dada”? Nada. Pode até significar rabo de vaca, ama de leite, cavalo de pau ou mesmo uma das primeiras palavras emitidas por um bebê: “papá”, “mamá”, “dada”.

Algumas propostas literárias dadaístas:

Liberdade total de criação (“Estamos contra todos os sistemas, mas sua ausência é o melhor sistema”);


Percepção da vida em sua lógica incoerência primitiva;


Criação de uma linguagem totalmente nova;


Ausência de nexo;


Estilo antigramatical;


Anarquia, espontaneidade, desvairismo;


Poema-piada e paródia;


Nihilismo, autofagia.
Para fazer Poema Dadaísta: este poema de Tristan Tzara demonstra e sua técnica literária que, aliás, era a mesma do seu amigo, o pintor alemão Hans Arp, também dadaísta, que fazia cair sobre a tela pedacinhos de papel que eram colocados exatamente onde ficavam parados.

RECEITA PARA FAZER UM POEMA DADAÍSTA

Agarre num jornal e numa tesoura. Recorte um pedaço de um artigo que tenha a extensão prevista para o seu poema. Recorte cada uma das palavras e meta-as numa bolsa. Mexa-as com cuidado. Tire depois cada palavra por sua vez ao acaso. Copie-as conscienciosamente. O poema parecer-se-á com você. E assim se transforma num escritor infinitamente original e de uma sensibilidade encantadora, se bem que incompreendido do vulgo.



No Brasil, o Dadaísmo manifestou-se em várias obras dos modernistas sem, contudo, domina-las integralmente.

Mário de Andrade, no “Prefácio Interessantíssimo” do livro de poemas Paulicéia Desvairada (a primeira obra modernista após a Semana da Arte Moderna), usou bastante da técnica dadaísta. Neste prefácio, o poeta procura criar um alicerce teórico do Modernismo e busca colocar, de forma polêmica, alguns aspectos que cercam a criação poética.

(fragmento)

Leitor:

Está fundado o Desvairismo.

Este prefácio, apesar de interessante, inútil.

Alguns dados. Nem todos. Sem conclusões. Para quem me aceita são inúteis ambos. Os curiosos terão prazer em descobrir minhas conclusões, confrontando obra e dados. Para quem me rejeita trabalho perdido explicar o que, antes de ler, já não aceitou.

Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo o que meu inconsciente me grita. Penso depois: não só para corrigir, como para justificar o que escrevi. Daí a razão deste Prefácio Interessantíssimo.

Alias muito difícil nesta prosa saber onde termina a Blague, onde principia a serenidade.

Nem eu sei.



O grande projeto dos modernistas era escrever brasileiro, criar um língua nacional livre. Manuel Bandeira, grande poeta modernista e amigo de Mário de Andrade, obedecendo a um procedimento dadaísta comum na época (a galhofa) fez, no poema a seguir, uma paródia modernista de outro poema do romântico Joaquim Manuel de Macedo (A Moreninha).

ORIGINAL DE MACEDO

Mulher, irmã, escuta-me: não ames,
Quando a teus pés um homem terno e curvo
Jurar amor, chorar pranto de sangue,
Não creias, não mulher: ele te engana!
As lágrimas são galas da mentira
E o juramento manto da perfídia.



TRADUÇÃO DE BANDEIRA

Teresa, se algum sujeito banco o sentimental em cima de você

E te jurar uma paixão do tamanho de um bonde

Se ele chorar

Se ele ajoelhar

Se ele se rasgar todo

Não acredita não Teresa

É lágrima de cinema

É tapeação

Mentira

CAI FORA!

NERVAL


Sylvie, que integra Les filles du Feu, é tida como obra-prima de Nerval; de modo superlativo, como um dos maiores livros já escritos por Umberto Eco, [19] em acréscimo aos elogios de Proust a essa novela em Contre Sainte-Beuve. Nela, dois tempos se alternam, o presente do narrador e seu passado, e dois espaços que também são planos de realidade, de Paris e da província, por sua vez associados a três personagens femininas: Sylvie, a quem o protagonista quer reencontrar; Adrienne, rememorada; e Aurélia, a musa perdida. Mas essas alternâncias de espaço e tempo, ao se sucederem, também se multiplicam, pois o tempo de um capítulo recorda o tempo de outro, e esse de outro, e assim por diante. Resulta, como o demonstrou Eco, em uma narrativa impossível, mesmo com a forma do relato realista. São impossibilidades temporais, e também, em outros de seus textos, espaciais: roteiros implausíveis de idas e vindas entre diferentes localidades, como em Angélique.

Relações de reflexão ou em eco, no interior da obra ou na relação entre várias obras, fazem que uma, sendo autônoma, também seja um comentário de outra. Em Angélique, primeira das narrativas de Les Filles du Feu, publicado em 1854, entrecruzam-se dois enredos: um deles na primeira pessoa, de um pesquisador que busca reconstituir a história do Abade de Bucquoy e descobre aquela de Angélique de Longeval; outro, a história reconstituída da própria Angélique. Mas a busca de informação sobre o Abade de Bucquoy já havia sido o tema de Les faux Saulniers, de 1850 (saulniers são trabalhadores em salinas); e os resultados da pesquisa acabariam dando em Histoire de l’Abbé de Bucquoy, de 1852, que integra Les Illuminés; de quebra, relatos de viagem em Les faux Saulniers seriam recortados e publicados em La Bohême Galante, também em 1852.

Há muito mais dessas manifestações de desprezo pela unidade da obra em Nerval, tornando-o mestre da interpolação, de encadeamentos narrativos que justificam ele apontar Lawrence Sterne, o autor de Tristan Shandy, como uma de suas leituras.

Tais ecos e abismos, dentro das narrativas e também entre elas, tornam Nerval, ao mesmo tempo que tão tradicionalista em sua busca de dois passados ou tempos perdidos, aquele da sua própria vida e outro arcaico, um autor moderno.

A dualidade metafísica e duplicidade literária podem, é claro, ser interpretadas psicologicamente: quando criou essas obras mais complexas, já estava louco, pois vinha tendo crises desde 1841. Mas, ao mesmo tempo, é consistentemente hermético: são sempre as correspondências, as relações analógicas entre diferentes planos de realidade e esferas simbólicas, que valem.

Esta observação de Steinmetz sobre As Quimeras serve para o conjunto da sua obra: […] somos mergulhados em um universo semântico da repetição, da reduplicação, da obsessão. [20] Uma das conseqüências foi seu abandono pela crítica, observado por Guillaume e Pichois no prefácio da edição de 1989 da Oeuvre Complète, cuja organização é por eles tachada de infernal: Gérard de Nerval não teve a chance de seus contemporâneos que encontraram, ao final do século XIX, exegetas tão dedicados quanto competentes. Sua obra foi como que deixada ao abandono. [21] Em outras palavras: faltou-lhe um Walter Benjamin.

A dualidade não apenas foi escrita, mas foi vivida por Nerval. Daí a sensação de ser dois, um e outro, atestada pela escolha do pseudônimo ao passar a designar-se a partir de 1838 como Nerval e não mais como Labrunie, seu nome de batismo, e documentada na foto em que anotou: eu sou um outro, publicada por Richer em Gérard de Nerval et les doctrines ésotériques (que seria interpretada de modo cabalístico por Breton em Arcano 17). Dela resultaram as dramáticas passagens de Aurélia em que se defronta com o duplo: seu perseguidor. Ou a epígrafe de Pandora, tirada do Fausto de Goethe:

Duas almas, ai de mim! Repartiam meu seio, e cada uma delas quer separar-se da outra: uma, ardente de amor, se apega ao mundo por meio dos órgãos do corpo; um movimento sobrenatural arrasta a outra para longe das trevas, rumo às elevadas moradas de nossos ancestrais. [22]

* * *

Se foi dúplice ao tratar de si, foi ao mesmo tempo uno e múltiplo em sua relação com mulheres, ou com a mulher. Seu culto a um princípio feminino, correspondente à amada perdida e à mãe que não tivera, por sua vez equivalentes a Isis, a todas as demais deusas e arquétipos, inclusive a Virgem e santas cristãs, confundia-as com as mulheres que realmente conheceu. Conforme Richer,

Isis é dita deusa polimorfa, deusa dos mil nomes.

Ora, em diversos lugares de sua obra, Nerval se compraz a enumerar os nomes da Deusa. No capítulo “As Três Vênus” de Viagem ao Oriente, ele a nomeia Minerva, Vênus, Perséfone, Diana, Afrodite, Panágia, etc. No relato do “Templo de Ísis” ele dá uma primeira lista (Ísis, Vênus, Urânia ou Ceres, Cibele), depois cita Apuleio (a citação comporta os nomes de Ísis, Minerva, Vênus Páfia, Juno, Proserpina, Estigiana, Ceres, Diana, Diotina, Belona, Hécate, Nêmesis, Cibele). [23]

São mulheres que, ao mesmo tempo, se confundem e desdobram: todas podem ser Vênus; mas Vênus é três.

A multiplicidade de figuras femininas é uma aplicação coerente do princípio hermético das correspondências universais. Se tudo se corresponde, então se equivalem as divindades desse conjunto e suas contrapartidas terrestres: Jenny Colon, as demais mulheres de sua vida, as personagens de ficção: Aurélia, Pandora, as “filhas do fogo” Sílvia, Angélica, Jemmy, Otávia, Emília etc, e as mulheres lendárias, Melusina, Pandora, Lorely.

* * *

Aurélia é tido como o documento da loucura de Nerval, sua obra delirante. Mas Steinmetz observa que Nerval também estava louco ao escrever As Quimeras: Até onde se sabe, a maior parte dos manuscritos de As Quimeras coincide com momentos de loucura. [24] Sonetos tão perfeitos, representando um pólo da condensação, coincidirem com surtos, inspira reflexões sobre as relações entre loucura e criação poética.

As Quimeras é poesia na primeira pessoa. Nerval não se duplicou; apresentou-se como um só: ele mesmo, em tom confessional. Mas esse “um” que se manifesta através dos poemas é ao mesmo tempo tudo: chama a atenção como nos doze sonetos (ou vinte, conforme a edição), foi capaz de evocar tamanha diversidade de símbolos, entidades mitológicas, personagens históricos, lugares, referências literárias.

Mas não são as mesmas crenças, o mesmo esoterismo e a mesma visão de mundo que se expressam através dos principais poemas desse livro.

Em El desdichado, que abre As Quimeras, é o autor a apresentar-se, declarando-se um exilado no mundo:

Sou o tenebroso – o viúvo – o inconsolado,
O príncipe na torre abolida de Aquitânia;
Morta minh’única estrela – meu alaúde constelado
Porta o Sol negro da Melancolia. [25]

O restante do poema é invocação da amada, tu que me consolaste, terminando com a declaração de que, Orfeu reencarnado, foi procurá-la no reino dos mortos:

Na noite tumular, tu que me consolaste,
Traga-me o Pausílipo e o mar d’Itália,
A flor que agradava tanto ao meu coração triste,
E o parreiral onde o pâmpano à rosa se alia.

Serei Amor ou Febo? … Lusignam ou Byron? [26]
Minha fronte está rubra, ainda, dos beijos da que reina;
Sonhei na gruta em que nada a sirena,

E por duas vezes, vencedor, atravessei o Aqueron:
Modulando alternadamente na lira Orféica,
Os suspiros da santa e os gritos feéricos. [27]

Em Sol Negro - Melancolia e Depressão, Julia Kristeva mostra que os primeiros versos de El desdichado seguem a ordem de cartas do Tarô. O tenebroso seria o arcano 15, o diabo; a torre abolida, desabada, o arcano 16; a estrela, aquela do arcano 17, da esperança.

É como se o poeta jogasse para tirar a sorte, e recebesse como resposta o arcano 16, da torre fulminada por um raio: o anúncio da sua destruição. Interessa a seqüência das cartas no jogo do tarô: o 16, símbolo da destruição, segue aquela do diabo; portanto, o colapso da torre (do consulente) é manifestação demoníaca; mas a torre fulminada precede o arcano 17, por sua vez título de uma obra de Breton: é a estrela da manhã, símbolo de um nascimento, da esperança no futuro e do conhecimento, [28] ou seja, da gnose; para Breton em Arcano 17, o emblema do triunfo de Lúcifer. A seqüência do jogo divinatório contém, portanto, uma teoria dos contrários.

El desdichado tem mais de um sentido: anuncia uma tragédia pessoal, a destruição do próprio poeta; e proclama duas vitórias sobre a morte, associadas à conquista do conhecimento e à eternidade do amor. E dá uma boa amostra do que Nerval exige de seu leitor, pelo cruzamento de símbolos de diferentes esferas. Começa pelo título: desdichado é desafortunado, infeliz, em espanhol; mas o título de Nerval se refere a um personagem de Ivanhoé, o romance de cavalaria de Walter Scott: esse desdichado, segundo Scott, significaria deserdado. Como assinala Steinmetz, Nerval seguiu o erro cometido por W. Scott; [29] e o poema não se refere apenas a alguém infeliz ou vítima da má sorte, mas a um deserdado: ao próprio Nerval.

Para a boa interpretação de apenas um dos versos – Serei Amor ou Febo? … Lusignam ou Biron? – o leitor precisaria saber, não só que Febo é Apolo, deus solar da inspiração poética, mas que Lusignan, um cruzado que se tornou rei de Jerusalém e Chipre no século XII, era tido como descendente da fada-serpente Melusina (também evocada por Breton em Arcano 17); e que Biron foi Charles de Gontaut, duque de Biron, decapitado em 1602, e não o lorde e poeta romântico inglês. [30] Assim ficaria claro o jogo de Nerval entre mitologia e história, ao apresentar-se como descendente de uma nobreza deserdada, os Labrunie, cujo castelo desabou, e por ser da estirpe maldita dos filhos de Caim. Ainda permaneceriam dúvidas: o Pausilípo da segunda estrofe é a baía do Posilipo em Nápoles – mas está lá por ter sido onde o poeta teve um encontro amoroso em uma de suas viagens (como assinala Steinmetz), pelo significado mítico do lugar, como berço de Netuno (como interpreta Richer), ou por ter sido onde tentou o suicídio (como observa Kristeva)? Provavelmente pelas três razões, entre outras.

O Cristo no Horto das Oliveiras, série de cinco sonetos, trata, não mais de um drama pessoal, mas de uma tragédia universal. É de um pessimismo ainda mais acentuado que El desdichado, pois não há retorno dos infernos ou ressurreição. O Cristo crucificado exclama: Não há Deus! E vislumbra o universo: Abismo! abismo! abismo!/ Falta o deus a este altar onde, vítima, eu cismo…/ Não há Deus! Deus não é!’ E eles sempre dormindo! [31]

Júpiter, a quem Pilatos se dirige para indagar sobre Cristo – equiparado a Ícaro e Átis – é uma divindade silenciosa: Mas sempre se calou o oráculo invocado;/ Um só daria este arcano ao mundo desvendado:/ – Aquele que deu alma ao ser de lama fria. [32]

Tratando de O Cristo no Horto das Oliveiras em Os Filhos do Barro, Octavio Paz argumenta que o tema da morte de Deus, ilustrado por esse poema, não tem lugar nem no racionalismo ateu, nem no cristianismo:

O tema da morte de Deus é um tema romântico. Não é um tema filosófico, mas religioso. Para a razão, Deus existe ou não existe. No primeiro caso, não pode morrer, e no segundo, como pode morrer alguém que nunca existiu? […] Se alguém diz “Deus morreu”, anuncia um fato irrepetível: Deus morreu para sempre. Dentro da concepção do tempo como sucessão linear irreversível, a morte de Deus torna-se um acontecimento impensável. [33]

Cristo no Horto das Oliveiras representa o gnosticismo em sua versão mais dualista, nestes versos sobre o terrível mundo sub-celestial: Um arco-íris estranho olha o poço sombrio,/ Umbral do velho caos de onde o nada é o feitio,/ Espiral, que devora os Mundos e os Dias!. E supõe a equivalência de Júpiter – o deus invocado em Cristo no Horto das Oliveiras – a um demiurgo gnóstico. É o estranho sincretismo comentado por Steinmetz:

Com Nerval acha-se proferido, pela primeira vez antes de Nietzsche, um “Deus está morto”, aliás questionado no final do poema. A angústia ontológica, com efeito, se resolve no soneto final em um estranho sincretismo assimilando Jesus às grandes vítimas mitológicas punidas por terem querido ultrapassar os limites humanos. [34]

A interpretação do deus de Cristo no Horto das Oliveiras com demiurgo gnóstico é fortalecida pela comparação com outro dos sonetos de As Quimeras, Anteros. Nele, o poeta se declara um descendente de Caim – Tenho por vezes de Caim o implacável rubor –, além de surgido da raça de Anteu e inspirado pelo Vingador. Proclama-se, dirigindo-se a Jeová! O último, vencido por teu gênio,/ Que, do fundo dos infernos, gritava: “Ó tirania!”/ É meu avô Belus ou meu pai Dagon… [35]

É quase inevitável a comparação com um poema de Baudelaire, da série Revolta de As Flores do Mal, intitulado Abel e Caim. De modo até mais explícito, declarado, Baudelaire também tomou o partido de Caim contra Jeová.

Novamente, em Anteros, é como se todas as religiões fossem a mesma, ou como se houvesse uma simbologia universal, da qual religiões e mitos apresentariam versões: em Cristo no Horto das Oliveiras há personagens dos Evangelhos que se dirigem a Júpiter, e não a Jeová; em Anteros são personagens de um mito grego, dos titãs (a história de Anteu, o filho de Geia, morto por Hércules), que, ao se dirigirem a Jeová, invocam os deuses fenícios Belus e Dagon, cujos cultos foram combatidos pelos judeus, em vez de se dirigirem ao Júpiter que, no mito, havia fulminado os titãs.

Portanto, no intercâmbio de mitos em Anteros e Cristo no Horto das Oliveiras é possível observar o deslocamento, com Jeová ocupando o lugar que deveria ser de Júpiter, e vice-versa. Isso, em poemas cuja característica é a condensação: dois mecanismos do sonho. Tais permutações, sendo oníricas ou delirantes, também são naturais para o adepto do esoterismo: este supõe a permutabilidade dos símbolos, manifestações aparentes ou faces visíveis dos arquétipos. É o que observa Steinmetz ao comparar Les Filles du Feu e As Quimeras: Nerval procede por deslocamentos, tomando exemplos no simbolismo universal, do qual sua história seria apenas uma parcela, um fragmento. [36]

Mas o importante em Anteros é que, conforme apontado por Richer, [37] esse poema se enquadra na moldura gnóstica sob dois aspectos decisivos. Um deles, ao identificar Jeová-Júpiter a um deus opressor; outro, ao declarar-se (presumindo que Anteros seja o alter-ego do poeta) o membro de uma raça perseguida, aquela dos descendentes de Caim, eleitos gnósticos para os cainitas.

Cristo no Horto das Oliveiras e Anteros possibilitam avançar na discussão, não só do gnosticismo em Nerval, mas também da sua relação com o cristianismo. Steinmetz parece vê-lo como rebelde anti-monoteísta; portanto, anti-cristão:

[…] Cristo no Horto das Oliveiras constata o deserto dos céus, Deus morto ou indiferente, e alinha Jesus ao número das ilustres vítimas sacrificadas por causa de sua loucura sublime. Nenhum desses sonetos [de As Quimeras] traz a marca da adesão ao monoteísmo. Bem ao contrário, os deuses é que são lamentados, mesmo se, para explicar o sistema do mundo, Nerval pareça admitir a realidade de um criador, aquele que nos tirou do limo. […] O movimento de rebelião contra um poder paterno é constante – quer se trate de Kneph, “velho perverso”, ou de Jeová, verdadeiro tirano. […] As rosas dos santos são um insulto aos deuses antigos e a imprecação é feita pára que elas caiam do céu – neve vã. [38]

Por isso, Nerval proclama a permanência de uma luta entre uma ordem antiga que eles [os deuses da Antiguidade] simbolizam e uma era futura referida ao monoteísmo. Nessa e em outras de suas notas para as Oeuvres Complètes, Steinmetz politiza Nerval, e por conseqüência o gnosticismo, ao salientar seu anti-autoritarismo, sua rebelião contra o Pai, bem como sua luta entre uma ordem antiga e uma era futura.

Em um dos sonetos da série complementar de As Quimeras, A J-y Colona, Nerval lamenta o fim do mundo pagão: os deuses de argila de um Templo, de imenso peristilo, foram destruídos por um Duque Normando; porém, sob as palmas do túmulo de Virgílio/ A pálida hortênsia se une ao loureiro verde. [39] Nesse poema, condensa As Quimeras: os sonetos são lamentações pela perda, não só da amada, mas do tempo em que os mitos eram verdadeiros; subsiste, porém, a esperança em uma união ou síntese, que permitirá o reflorescimento do paganismo.

Aceita a caracterização do rebelde por Paz (examinada no final do Capítulo 4º) como aquele que procura restaurar os mitos, então Nerval, com sua loucura teomaníaca, como a classifica Steinmetz, [40] foi o rebelde romântico por excelência.

Ártemis, outro dos poemas com simbologia numérica e do tarô em As Quimeras, [41] também é sombrio, na mesma tonalidade de El Desdichado. Desde a frase incial: A Décima-Terceira volta… E ainda é a primeira, é sobre um fim que é um recomeço, pois o treze, no tarô, é o arcano da morte, a carta do ceifador, assim como a Ártemis do título, Diana, uma deusa tutelar da morte. Por isso, proclama-a Rainha e A única que amei e que ainda me ama constante:/ É a Morte – ou a Morta. Jenny Colon, no sincretismo nervaliano, é Ártemis e a mártir napolitana Santa Gudula: uma deusa da morte e uma santa que foi morta. O amor, reunião ao arquétipo feminino, só se realiza pela morte: por isso, Ártemis é mais um dos textos de Nerval que anunciam o suicídio, porém confiando em um retorno, na síntese de Eros e Tânatos.

Se O Cristo no Horto das Oliveiras pode ser considerado sombrio, noturno, Versos Dourados é solar. Expressa a crença na religião da natureza, na sacralidade cósmica: é a visão panteísta de um mundo vivo. Desde a epígrafe atribuída a Pitágoras – Céus! tudo é sensível –sustenta que o ser humano é parte de um todo:

Homem! livre pensador! serás o único que pensa
Neste mundo onde a vida cintila em cada ente?
De tuas forças tua liberdade dispõe naturalmente,
Mas teus conselhos todos o universo dispensa.

Honra na fera o espírito que fermenta…
Cada flor é uma alma em Natura nascente;
Um mistério de amor no metal reside dormente;
“Tudo é sensível!” E poderoso em teu ser se apresenta.

Receia, no muro cego, um olhar curioso:
À própria matéria encontra-se um verbo unido…
Não te sirvas dela para qualquer fim impiedoso!

Quase sempre no ser obscuro mora um Deus escondido.
E, como um olho novo coberto por suas pálpebras,
Um espírito puro medra sob a crosta das pedras! [42]

Contador Borges o qualifica como soneto pitagórico que anuncia o tema das “correspondências” em Baudelaire. Propõe, ainda, uma interpretação alquímica de Aurélia: Ambos [Versos Dourados e Aurélia] aludem à busca do conhecimento através da “pedra filosofal” da Alquimia, ambos derivam nos títulos de aurum. [43] Mas toda obra situável no quadro do gnosticismo e do hermetismo também o é naquele da alquimia. Inclusive o que El Desdichado tem de soturno pode ser entendido como correspondendo ao nigredo, à primeira etapa da operação cuja culminância seria representada por Versos Dourados, por isso posto no final do livro.

Leitores de Nerval já comentaram Versos Dourados. Dentre eles, Breton em Do Surrealismo em suas Obras Vivas, para afirmar a mesma crença hermética nas correspondências entre macrocosmo e microcosmo. Octavio Paz também se refere a Versos Dourados em Leitura e Contemplação, ensaio sobre glossolalias e o “falar em línguas”. [44] Entende o tudo é sensível da epígrafe do poema como equivalente a tudo é significativo: o universo todo, o conjunto das coisas, é linguagem, inteligível pelo iluminado capaz de ler as assinaturas divinas, as marcas do macrocosmo em cada particular. É a língua adâmica; aquela da Idade do Ouro, do tempo anterior à queda. O poeta é, portanto, quem traduz a simbologia universal. O entendimento do poeta como tradutor do universo ainda viria a ser claramente apresentada por Baudelaire; isso, lembrando que ambos, Nerval e Baudelaire, foram tradutores.

Versos Dourados, ao fechar As Quimeras, possibilitou que a série fosse de doze poemas. A cifra doze significa a completude, o fim de um ciclo: no tarô, é a carta do enforcado ou pendurado, representando um sacrifício e também um pronunciamento divino: a Lei revelada. Nerval quis encerrar com o poema sobre o mundo paradisíaco anterior à queda, ao qual chegaria após a descida aos infernos, completando o percurso iniciático: o mesmo enredo de Aurélia.

Em As Quimeras não apenas combinam-se acontecimentos históricos, da queda de Roma à derrota de Napoleão, às mitologias egípcia, grega, indiana, escandinava, além de referências à Bíblia, aos apócrifos judaicos e ao Alcorão. A geografia também é sincretizada: A Madame Aguado e Eritréia, poemas em que descreve paradisíacas paisagens orientais, situam Benares, cidade da Índia, na africana Eritréia; em ambos repete a imagem da neve de Cathay (a China) que cai no Atlântico austero, [45] e não, como deveria ser, no Índico ou no Pacífico. Por isso, vale para As Quimeras um comentário de Richer a propósito de Voyage em Orient: Seu desprezo, ou melhor, sua ignorância soberba da história e da cronologia não passam de um aspecto desse desprezo pelo tempo que transparece em todas as suas obras. [46]

Há desprezo pelo tempo e pelo espaço porque os poemas são expressões do pensamento analógico. Nerval não separa ordens de realidade ou campos do saber: tudo se encadeia e corresponde. Por essa lógica, no poema Napoleão o imperador é um messias sacrificado e um avatar, comparado a Cristo e ao Set gnóstico.

É um inadmissível chavão classificar poetas como “difíceis”. Afinal, qualidade poética supõe algo como espessura, profundidade ou densidade. Quem quiser emitir mensagens imediatamente inteligíveis, que se valha do modo prosaico. Contudo, mesmo com essa ressalva, As Quimeras é poesia especialmente difícil – algo que Nerval sabia, observando, na carta a Alexandre Dumas que abre Les Filles du Feu, que seus sonetos, compostos em estado de sonho supernaturalista, […] não são mais obscuros que a metafísica de Hegel e os Memoráveis de Swedenborg, e perderiam seu encanto ao serem explicados, se isso fosse possível. [47]

E mais: sobrepõem-se dificuldades. Uma delas, pelo simbolismo. Seria preciso saber os sentidos de todos os símbolos empregados por Nerval: aqueles esotéricos e mágicos, astrológicos, alquímicos e de outras ramificações do hermetismo; e as alusões históricas, genealógicas e literárias. Outra dificuldade é pelo embaralhamento a que procede, ampliando e multiplicando tais sentidos para além de suas matrizes ou lugares originais. É a confusão de todos os arquétipos, em uma corrida alucinada de todas as analogias, como observa Bueno no prefácio de As Quimeras. [48]

Aceita a distinção entre um simbolismo esotérico, escrita cifrada, e um simbolismo literário, que proclama a autonomia do símbolo, então Nerval foi ao mesmo tempo expoente do simbolismo esotérico e iniciador do simbolismo literário. Isso é reconhecido por Guillaume na introdução às Oeuvres Complètes: seus primeiros poemas, as Odelettes, anunciam Verlaine, além dos sonetos que, bem antes de Mallarmé, buscam e conseguem incorporar a si a música. [49] E por Béguin, pelo caráter “simbólico” e alusivo que logo definirá toda a poesia pós-baudelairiana. [50] E ainda praticou simbolismo literário com simbologia esotérica: um duplo simbolismo.

Vale para As Quimeras e boa parte da obra nervaliana o comentário de Kristeva sobre o eclipse do sentido e a multivalência de conotações em El desdichado:

[..] essas referências [aquelas simbólicas, esotéricas], que constituem a ideologia de Nerval, estão inseridas numa trama poética: desenraizadas, transpostas, elas obtêm uma multivalência de conotações, em geral, indefinidas. A polivalência do simbolismo no interior dessa nova ordem simbólica que é o poema, ligada à rigidez dos símbolos no seio das doutrinas esotéricas, confere à linguagem de Nerval um duplo privilégio: por um lado, assegurar um sentido estável tanto quanto uma comunidade secreta, onde o inconsolado é ouvido, aceito, e, em suma, consolado; por outro, abandonar esse sentido monovalente e essa própria comunidade, para chegar o mais próximo possível do objeto do pesar especificamente nervaliano, através da incerteza da nomeação. [51]

Em outras palavras: Nerval usou o vocabulário esotérico, mas se expressou como poeta. A simbologia é constitutiva do sentido do poema; mas é refeita, produzindo novos sentidos, e mais: o que está além da relação de significação.

* * *

Hermetismo e gnosticismo, não-linearidade, incertezas da nomeação, desprezo por princípios da lógica e parâmetros da realidade: tudo isso reaparece de modo paroxístico em Aurélia. Nerval quis, expressamente, relatar a efusão do sonho na vida real, [52] o modo como o onírico transborda, ultrapassa limites. Começa com esta frase: O sonho é uma segunda vida. A declaração poderia ser epígrafe de um surrealista como Robert Desnos. A defesa do sonho por Breton, no primeiro Manifesto do Surrealismo, é uma paráfrase do que Nerval diz em Aurélia. Mas ele sabia que não estava apenas a sonhar. Seu estado era outro, de sobreposição do sonho e da vigília. Através da rêverie, de um estado análogo àquele em que Swedenborg viajava pelo cosmos, sonhava e estava desperto. Por ser narrativa onírica, predomina um princípio da mutação: Tudo transformava-se ao meu redor. […] A partir desse momento, tudo adquiria por vezes um aspecto duplo. Pretendia, nessa nova vida – em uma das suas alusões a Dante, indicando que Aurélia é uma Divina Comédia caótica – chegar à síntese, ao conhecimento superior que possibilitaria a compreensão do mundo, de sua origem e fim, e do seu próprio destino no mundo. A gnose alcançada nesse estado também lhe permitiria ordenar a babel bibliográfica através da qual se havia formado:

Meus livros, uma estranha pilha da ciência de todos os tempos: história, viagens, religiões, cabala, astrologia, que alegraria as sombras de Pico de la Mirandola, do sábio Meursius e de Nicolau de Cusa – a torre de Babel em duzentos volumes – deixaram-me tudo isso! Havia bastante para tornar louco um sábio; façamos com que também haja o suficiente para tornar sábio um louco.

Tal síntese exigia a formulação de um mito, a exemplo dos profetas da Antiguidade. Nele, articulam-se a visão hermética e gnóstica do mundo. Do hermetismo, é repetidamente afirmado o princípio das correspondências: O macrocosmo, ou grande mundo, foi construído pela arte cabalística; o microcosmo, ou pequeno mundo, é sua imagem refletida em todos os corações. Menciona a Tábua Esmeralda, documento-chave do hermetismo: Eu tentara reunir as pedras da Tábua sagrada, e representar em volta os sete primeiros Elohim que haviam repartido o mundo entre si. Note-se, nessa frase, a fusão de duas mitologias, ou duas doutrinas: a repartição do mundo por anjos ou arcontes, exposta no Livro de Enoch e adotada por Simão o Mago e demais gnósticos, é estranha à Tábua Esmeralda, proclamação da sincronia entre mundo e divindade.

Da doutrina das correspondências advém que somos deuses, ou quiçá sejamos Deus, conforme o relato de um sonho por um amigo e companheiro de hospício, que poderia ser um comentário ou paráfrase de Versos Dourados:

[…] um sonho sublime nos mais vagos espaços do infinito, uma conversa com um ser ao mesmo tempo diferente e participante dele mesmo, e a quem, dando-se por morto, ele indagava do paradeiro de Deus. “Mas Deus está em toda parte”, respondeu seu espírito; “ele está em ti mesmo e em todos. Ele te julga, ouve, aconselha: somos tu e Eu que pensamos e sonhamos juntos – nós jamais nos abandonamos… e somos eternos!”

Há, portanto, um trânsito do macrocosmo para o microcosmo, do infinito para o finito, e vice-versa: segundo penso, os eventos terrestres estão ligados aos do mundo invisível. Trata-se de uma dessas relações estranhas das quais eu mesmo não me dou conta, e que são mais fáceis de indicar que de definir…

Uma das conseqüências dessas relações estranhas é a consubstancialidade em sua versão mais ampla, como participação de tudo em tudo, afirmada nesta passagem: Diz-se com propriedade: nada é indiferente no mundo, nada é impotente no universo; um átomo pode dissolver tudo, um átomo pode salvar tudo! Não apenas os planetas regem o mundo, como na astrologia clássica; reciprocamente, o movimento humano dirige os planetas:

Imaginei a princípio que todas as pessoas reunidas no jardim tinham, alguma influência sobre os astros, e que aquele que girava incessantemente no mesmo círculo regrava dali a marcha do Sol. Um velho que traziam em certas horas do dia e que fazia nós consultando seu relógio era, para mim, o encarregado de constatar a marcha das horas. Atribuí a mim mesmo uma influência sobre o curso da Lua; acreditei que esse astro fora atingido por um raio do Todo-Poderoso que imprimira em sua face a forma da máscara observada por mim.

A interdependência de macrocosmo e microcosmo adquire um tom dramático na cena em que encontra e logo perde de vista a mulher misteriosa em um jardim. É a mulher-mundo, e sua desaparição equivale ao fim do mundo:

Aos poucos o jardim adquiria-lhe a forma [da mulher misteriosa] […] Eu a perdia assim de vista à medida que se transfigurava, pois ela parecia esvanecer-se na própria grandeza. “Oh! Não fujas! supliquei… senão a natureza morre contigo1” […] passando os olhos à minha volta, vi que o jardim tomara o aspecto de um cemitério. Vozes diziam: “O universo está dentro da noite!”

Se o macrocosmo e o microcosmo, o ser humano e o universo, se correspondem de modo recíproco, então, nesta versão trágica do idealismo mágico de Novalis, a desaparição de uma pessoa acarreta o fim do mundo. A filosofia da natureza dos românticos, sintetizando ciência e religião, torna-se narrativa de horror:

Os raios magnéticos emanados de mim mesmo ou dos outros atravessam sem obstáculos a cadeia das coisas criadas; uma rede translúcida cobre o mundo, e seus fios soltos comunicam-se gradualmente com os planetas e as estrelas. […] Se a eletricidade, o magnetismo dos corpos físicos, pensei, pode submeter-se a uma direção imposta por leis, tanto mais os espíritos hostis e tirânicos podem subjugar as inteligências e se servirem de suas forças divididas com objetivo de dominação.

Aurélia pode ser lido como o equivalente, por um poeta romântico, do culto à serpente dos ofitas e naassenos: A serpente que envolve o Mundo é ela própria abençoada, porque afrouxa seus anéis, e sua bocarra aspira a flor de anxoka, a flor sulfúrea – a flor brilhante do Sol! Seu mito da origem é uma espécie de história do mundo misturada com lembranças de estudos e fragmentos de sonhos. O drama cósmico do qual resultou o mundo ocorre em outro lugar: em um planeta obscuro onde se debatiam os primeiros germes da criação. A queda desse planeta obscuro é um movimento perpetuamente descendente: E, com efeito, eu via, resvalando por um vão da porta numa linha de sombra, a geração descendente das raças futuras.

Em conseqüência, o futuro sempre será pior: é a visão gnóstica do tempo, oposta à crença na evolução e em uma lógica da história.

Assim como em apócrifos da Antigüidade, a origem é um erro. Ou então, na origem da vida está o erro, e não o Verbo, o logos. Ou ainda, o logos, porém enunciado de modo errado: Houve, a meu ver, um erro na combinação geral dos números; e vinham de lá todos os males da humanidade. É a fórmula cabalística: se a enunciação correta do nome de Deus cria o mundo, então a enunciação errada acarreta sua destruição. Nerval deu um complemento romântico a esse princípio, ao afirmar que o poeta, mago e novo messias, enunciará as palavras corretas: Eu parecia ter a função de restabelecer a harmonia universal pela arte cabalística e de buscar uma solução evocando as forças ocultas das diversas religiões.

Não poderiam faltar a esse drama os arcontes; os Elohim, na versão de Nerval. É registrada a impotência de Deus, o deus de Lucrécio impotente e perdido em sua imensidão. Reitera O Cristo no Horto das Oliveiras, porém, desta vez, inserindo a proclamação da morte de Deus em uma cosmogonia complexa.

Outro mito que reaparece é o da divindade feminina, a deusa radiante. Geratriz do mundo caída, é Isis, Vênus, a Virgem Maria: todas as deusas. E também Aurélia: à maneira de Simão o Mago, confere estatuto divino a Jenny Colon. A reintegração é união com o princípio feminino, a esposa-mãe ausente. Mas essa união falha por intervenção do outro, do duplo maligno. Acontece uma troca na câmara nupcial, e quem acaba se unindo a Aurélia-Isis-Vênus-Maria-Jenny é a alma adventícia, e não o “eu” verdadeiro:

Falava-se de um casamento e do noivo que, conforme diziam, devia chegar para anunciar o momento da festa. Um arrebatamento insano logo apoderou-se de mim. Imaginando tratar-se daquele que era meu Duplo, e que deveria desposar Aurélia, fiz um escândalo que pareceu consternar a assembléia.

Aurélia é a história da cisão do andrógino. Para resgatar a contrapartida feminina, a exemplo de Orfeu, patrono dos poetas, terá que descer ao reino dos mortos. Por isso, a segunda parte do livro se intitula Eurídice! Eurídice! Paz, conforme citado acima, observou que Nerval, em O Cristo no Horto das Oliveiras, transformou um sonho em mito. Foi mais longe, porém: transformou tudo em mito; não apenas o conjunto dos episódios de sua vida, como sua morte; suicidando-se, foi Orfeu.

* * *

A relação entre a conduta de Nerval e aquilo que escrevia foi romantismo levado a sério: o compromisso total com valores românticos. A semelhança do que é exposto em Aurélia com relação ao idealismo mágico de Novalis é evidente; mas é como se a mesma busca da síntese terminasse em catástrofe; como se Heinrich von Ofterdingen não chegasse a lugar algum, ou a investigação dos discípulos de Saïs desembocasse em um solipsismo, ou o elogio da morte nos Hinos à Noite fosse seguido ao pé da letra.

Em Aurélia, Nerval transformou um drama pessoal em tragédia. Nisso reproduziu uma lógica romântica, evidente em autores tão diversos como Novalis e Victor Hugo: se o macrocosmo e o microcosmo são articulados, então dramas pessoais – a perda de Sophie e Erasmus em Novalis, as mortes dos filhos em Victor Hugo, a orfandade e a perda de Aurélia em Nerval – correspondem a acontecimentos cósmicos; e ao mesmo tempo refletem-se, pela lógica da consubstancialidade, na esfera cósmica.

Baudelaire, em um dos seus prefácios a Poe, havia designado o suicídio de Nerval como gesto de lucidez. Para Kristeva,

A melancolia motiva a “crise de valores” que sacode o século XIX e que se exprime na proliferação esotérica. A herança do catolicismo encontra-se questionada, mas seus elementos relativos aos estados de crise psíquica são retomados e inseridos num sincretismo espiritualista polimorfo e polivalente. [53]

No entanto, isso já caracterizava a cultura da segunda metade do século XVII; termos como proliferação esotérica e sincretismo espiritualista aplicam-se tão bem a Blake e Novalis quanto a Nerval. Mas o que não se enxerga em Blake, e não se vê em uma versão tão extrema em Novalis, é a melancolia: Blake e Novalis parecem monistas que tomam o dualismo como caso particular; em Nerval, o quadro de referências é todo dualista, e a visão de mundo monista é uma possibilidade futura.

O intervalo temporal que separa Nerval de Novalis e Blake corresponde à perda das ilusões; ao desvanecer-se de uma visão de mundo otimista. Para a primeira geração romântica, acontecimentos como a Independência norte-americana e a Revolução francesa davam sentido à história. Justificavam esperanças em uma Europa que se reconstruía após a Guerra dos Sete Anos e poderia chegar a ser a Jerusalém ou Golgonooza de Blake, a cristandade restaurada de Novalis. A geração de Nerval presenciou o colapso de um império, uma restauração monárquica e duas revoltas derrotadas, as de 1830 e 1848.

O futuro fechava-se para Nerval e seus pares. Não lhe oferecia muito mais que a consolidação da sociedade burguesa naquele ambiente de reação conservadora. Guillaume e Pichois comentam, nas Oeuvres Complètes, os meses de incerteza e medo em 1850, ilustrados por este comentário de Máxime Du Camp: Literariamente falando: nada, calma platitude; em todo lugar o tédio dominante, indiferença por todas as coisas que não tocam diretamente ao interesse material; está bugremente morto o tempo dos entusiasmos. [54]

O mesmo ambiente de calma platitude e tédio dominante exasperava Baudelaire, levando-o a afirmar, no poema-abertura de As Flores do Mal, que nada podia ser pior nem mais infernal que o tédio; e, em 1857, dois anos após a morte de Nerval, em seu texto sobre Madame Bovary de Flaubert, a diagnosticar uma sociedade absolutamente embotada – pior que embotada –, embrutecida e gulosa, que não sentia horror senão pela ficção nem amor senão pela posse. [55]

Nerval e Baudelaire se tocam. Se desprezássemos a cronologia, Nerval poderia passar por baudelairiano. Surpreende como tiveram pouco contato. Nerval não tomou conhecimento de Baudelaire, apesar de freqüentarem os mesmos lugares e terem os mesmos amigos. Baudelaire só se referiu a Nerval em duas ocasiões: a primeira, depreciativamente, e a segunda para elogiar seu suicídio.

Há outros pontos de contato: ambos foram atingidos pela censura que se acirrou no pós-1848, com o Segundo Império. Entre suas conseqüências, a interdição de As Flores do Mal e de vários textos de Nerval, levando-o a desistir de projetos teatrais. Isso, conforme registrado pelos organizadores das Oeuvres Complètes, em meio a destituições de funcionários públicos e toda sorte de proibições; até mesmo de usarem barba (mostrando que a repressão visou os rebeldes românticos e não só os revolucionários socialistas, assim como, mais tarde, seriam perseguidos hippies e não só militantes).

Com todo o bucolismo de Nerval, sua rememoração de uma idílica vida campestre, algo frontalmente negado por Baudelaire, ainda há paralelos possíveis na relação de ambos com Paris. Nerval também foi flâneur, conforme registrou nas crônicas de Les Nuits d’Octobre, algumas delas perfeitamente compatíveis com O Spleen de Paris – Pequenos Poemas em Prosa. E suas viagens tiveram algo de flânerie intercontinental, e não mais apenas parisiense.

As reformas de Paris a partir de 1848, com a destruição que precedeu a abertura dos grandes bulevares, embora sejam um dado mais importante para a interpretação de Baudelaire, também afetaram Nerval. Tiveram um efeito mais direto: por causa delas, foi desalojado, expulso de onde morava em 1850, para nunca mais ter domicílio fixo.

O estreitamento das perspectivas de Nerval e seus contemporâneos não foi apenas político. Em meados do século XIX, saíam do horizonte as possibilidades da realização do conhecimento total, da grande integração e síntese, reconciliando religião e ciência, misticismo e racionalismo. A filosofia romântica dos Schelling e Schlegel caía em desgraça. Na razão direta da perda de prestígio dos Werner e Ritter, das doutrinas vitalistas e organicistas na ciência, o determinismo tomava conta da cena, agora com um novo porta-voz, Augusto Comte, sistematizador e arauto do positivismo. Enfim, tudo parecia dar razão à premissa gnóstica adotada por ambos, Nerval e Baudelaire, de que o Tempo é uma via descendente, ao longo da qual tudo inexoravelmente tende a piorar.

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GÉRARD DE NERVAL


revista de cultura # 63
fortaleza, são paulo - maio/junho de 2008












Gérard de Nerval aos 200 anos

Claudio Willer

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Que ano de efemérides, 2008. Uma delas, evocando Gérard Labrunie, na literatura Gérard de Nerval, que nasceu em Paris a 22 de maio de 1808.

Por isso, ia extrair algo do capítulo sobre Nerval, da minha recente tese de doutoramento, Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e a poesia moderna. Mas o que vem a seguir é a reprodução desse capítulo quase na íntegra, apenas reduzindo as interpretações específicas de seu gnosticismo, e tornando menos universitárias as notas, referências bibliográficas e um ou outro parágrafo mais voltado para questões de teoria literária. Resulta um ensaio algo pesado para o meio digital, talvez. Mas Nerval merece, inclusive para sugerir sua complexidade e destacar sua condição de poeta que apenas começa a ser estudado.

Mesmo levando em conta sua adoção precursora por Breton e a atenção que lhe dá Octavio Paz em Os Filhos do Barro (Los Hijos del Limo), Nerval ainda nos oferece um colossal território a ser percorrido. Isso, reconhecendo o valor das interpretações simbólicas, de fundamentação esotérica, como as de Richer. Ou, mais recentemente, algo como Le Rebis… De Gérard de Nerval a Raymond Roussel, de Richard Khaitzine, em uma publicação, da Apenas Livros de Portugal, da qual também tive a satisfação de participar. [1]

* * *

Cronologicamente, Nerval corresponde a um final e a um início. Ao final de um ciclo: nascido em 1808, seis anos mais novo que Victor Hugo e treze anos mais velho que Baudelaire, faz parte da última geração romântica francesa, aquela dos “Jeune France” liderados por Petrus Borel, freqüentadores do Petit Cénacle, que participaram da “Batalha do Hernani” em 1830 (para essas e outras informações, Nerval, Gérard de, Oeuvres complètes, org. Jean Guillaume, Claude Pichois e outros, Éditions Gallimard, Paris, vol. I, 1989, vol. II, 1984; vol. III, 1993, Gallimard, Paris). E a um início: aquele do verdadeiro romantismo francês, não só pela tradução, aos dezenove anos de idade, do Fausto (elogiada pelo próprio Goethe). Foi o tradutor e difusor na França de românticos alemães, reunidos na coletânea Poésies allemandes; e, em especial, um leitor da vertente onírica e fantástica de Hoffmann e Jean-Paul.

A tese de um romantismo francês verdadeiro e tardio, em oposição a outro, cronologicamente ajustado, porém falso, é de Octavio Paz em Os Filhos do Barro. Focalizando a unidade negativa da revolução romântica, distingue o romantismo oficial do verdadeiro romantismo francês. [2] O oficial, composto por uma série de obras eloqüentes, sentimentais e discursivas, que ilustram os nomes de Musset e Lamartine. O verdadeiro, por um número muito reduzido de obras e de autores: Nerval, Nodier, o Hugo do período final e os chamados ‘pequenos românticos’. O simbolismo da segunda metade do século XIX seria herdeiro e metáfora do verdadeiro romantismo francês.

Um quarto de século antes de Os Filhos do Barro, Albert Béguin, em seu livro sobre romantismo e sonhos, tratando da tradição do romantismo interior, afirmava que,

[…] sendo possível encontrar seus primeiros balbucios nos ocultistas do século XVIII, em Saint-Martin e Restif de la Bretone, só chegará a sua plena expansão nas iluminações de Nerval lutando contra a demência e a morte, de Hugo idoso debruçado sobre o abismo, de Baudelaire perseguindo a possessão da Eternidade, de Rimbaud adolescente invadido pela visão, e finalmente dos surrealistas em busca de um método poético. [3]

Richer, intérprete de Nerval à luz do esoterismo, também o destaca como precursor: ele se situa histórica e psicologicamente entre Hugo e Baudelaire; mas A geração que segue Nerval se banha na atmosfera que ele criou. [4]

Representante do romantismo interior examinado por Béguin, do subjetivismo herdeiro dos românticos alemães, Nerval também representou a continuidade romântica entre arte e vida. Ninguém confundiu a tal ponto a esfera simbólica e aquela dos acontecimentos biográficos. Foi um personagem de si mesmo. Sua biografia traz um fascínio adicional à leitura da obra: inclui a agitação boêmia em companhia de outros românticos, como Gautier, Borel e Houssaye; as viagens, algumas delas parecendo de um beatnik precursor; a paixão pela atriz Jenny Colon, a quem conheceu em 1836, e que morreria em 1843 (o que não o impediu de ter outras relações com mulheres); a dilapidação de praxe de uma herança (para patrocinar uma revista teatral através da qual cultuava sua amada); as crises, surtos e internações a partir de 1841 (ou antes, conforme sugerido nas notícias biográficas das Oeuvres Complètes), culminando com o suicídio em 1855 – crises e surtos que não o impediram de escrever o equivalente a duas mil páginas (em formato Pléiade) de 1850 até sua morte.

Conseqüentemente, foi e pôde ser, de pleno direito, auto-referente, a pronunciar-se na primeira pessoa de diferentes modos: nos relatos e crônicas de viagens reais, nos quais, no entanto, introduziu bastante ficção, especialmente em Voyage en Orient; em ficções, a exemplo de Pandora e das narrativas de Les filles du feu, apresentados na primeira pessoa, além de incorporarem acontecimentos reais. De modo recíproco, projetou-se em personagens, como na história de Raoul Spifâme, o louco que acreditava ser outro, em Le Roi de Bicêtre de Les Illuminés. Segundo Max Milner (no prefácio da edição da Livre de Poche de Les Illuminés), no início do extenso trecho sobre Restif de la Bretonne em Les Illuminés é relatado o encontro do autor de Noites Parisienses com uma atriz; na verdade, seria o encontro do próprio Nerval com Jenny Colon. E, finalmente, Nerval foi personagem de si mesmo em Aurélia. Por isso, o comentário de Steinmetz sobre Petits châteaux de Bohême vale para o conjunto da sua obra: somos constantemente convidados a passar de um regime de leitura a um outro, do domínio fictício ao domínio vivido: de toda evidência, através de referências dadas e como que impostas, uma outra realidade tende a vir à luz. [5]

Fazem parte de uma cultura romântica, igualmente, as ligações de Nerval com o esoterismo. Como relatou na abertura de Les Illuminés e comentou em Aurélia, com a mãe morta quando acabara de completar dois anos de idade e o pai, médico militar, em campanha, foi criado por um tio-avô, colecionador de livros de cabala, alquimia e magia. Teria aprendido a ler através dessas obras. Faz parte da continuidade nervaliana entre arte e vida o protagonista de seus relatos ficcionais, a exemplo de Angélique, ser um pesquisador em acervos dos quais a biblioteca do seu tio-avô foi o modelo.

Nerval prosseguiria e ampliaria essa pesquisa ao longo de toda a sua vida, orientado por um propósito místico resumido neste comentário de Richer: A obra de Nerval é, pois, um perpétuo esforço de reintegração. [6] Pode-se, por isso, conferir-lhe a condição, não só de interessado e fascinado por doutrinas esotéricas, mas de conhecedor. Assistemático, embaralhava fontes, ou deixava de citá-las, mas, sem dúvida, sabia claramente do que falava, como se vê por esta caracterização do martinismo em Les Iluminnés, como doutrina que renovava simplesmente a instituição dos ritos cabalísticos do século XI, último eco da fórmula dos gnósticos, onde algo da metafísica judaica se mistura às teorias obscuras dos filósofos alexandrinos. [7]

No volume de informação esotérica absorvido por Nerval, sobressai a ligação com o martinismo, a doutrina de Martines de Pasqually, líder dos eleitos Cohen, como mostra Richer:

Nerval sofreu a influência do gnosticismo através de Martines de Pasqually. Ele [Nerval] nos parece em alguns momentos maniqueísta, gnóstico, cainita, adepto da Mãe. […] imitando os antigos dualistas, Gérard invoca como autoridades os escritos de Adão, de Set e de Enoch. […] Conformando-se a esse ensinamento, Nerval queria fazer de Jeová um Deus ciumento e mau, e da raça de Caim, à qual acreditava pertencer, uma raça eleita. [8]

Se, para Richer, Nerval parece gnóstico em alguns momentos, para Steinmetz, nas notas das Oeuvres Complètes, foi um quase gnóstico:

Nerval, quando do seu delírio de 1841, edificou – pelo que seus textos e suas cartas nos permitem perceber –, sob a invasão das imagens de seu inconsciente, um mundo quase gnóstico paralelo ao nosso. Seu sincretismo daquele tempo não correspondia – embora pudesse parecê-lo – a um princípio de confusão, mas tendia a construir um sistema intuitivamente justificativo das anomalias da sua vida, das dores que o haviam dilacerado, dos erros que ele havia perpetuado. [9]

Tomando o sincretismo como atributo fundamental do gnosticismo, bem como do romantismo, então Nerval foi hiper-gnóstico e hiper-romântico. Isso foi observado, entre outros, por Jean Guillaume em uma das notas das Oeuvres Complètes:

Se a palavra “romantismo” tem um sentido, ela designa a busca da unidade perdida desde a instauração da ciência moderna, e sempre frágil, sempre ameaçada, quando é reencontrada. […] Aquilo que é chamado de sincretismo de Nerval é, na verdade, o profundo romantismo, o qual o delírio lhe permite alcançar. O homem razoável aceita a distinção, a divisão, por via de conseqüência a mutilação; ele diz: o sonho ou a vida. Nerval: o sonho e a vida. Ele [o ‘homem razoável’] diz Vênus ou Isis ou a Virgem; Nerval as confunde. [10]

Além de sincrético, Nerval foi de um ecletismo comentado por Richer: sabe-se que ele pretendia ter dezessete religiões e mostrava respeito por todas elas. Também para o tradutor brasileiro de Aurélia, Contador Borges, Livre pensador no sentido mais pleno do termo, Nerval não era ortodoxo nem de uma religião, nem de uma heresia. [11] E o tradutor brasileiro de As Quimeras, Alexei Bueno, se refere a seu templo órfico-céltico-egípcio-pitagórico-cabalístico-cristão, [12] e sua antiortodoxia com relação a qualquer sistema e à pan-religiosidade dessa série de poemas.

A pan-religiosidade o levou, especialmente em Voyage em Orient, sua narrativa de viagem mais complexa, a fazer estudos comparativos de símbolos, mitos e religiões, procurando demonstrar sua universalidade. Um exemplo é a nota de rodapé do relato da lenda de Suleiman (Salomão), Adoniran e a rainha de Sabá, ao observar que Salomão acabou sendo destruído por um inseto minúsculo:

Será observada a relação que se encontra entre o ácaro triunfante sobre as combinações ambiciosas de Salomão e a lenda de Edda, que se relaciona a Balder. Odin e Freya haviam igualmente conjurado todos os seres, afim de que respeitassem a vida de Balder, seu filho. Esqueceram o visgo do carvalho, e essa humilde planta foi a causa da morte do filho dos deuses. É por isso que o visgo era sagrado na religião druídica, posterior àquela dos escandinavos. [13]

Todo o Voyage em Orient é assim: no Egito do século XIX, viu Alexandria dos hermetistas e o Egito dos faraós; das lendas árabes e do Alcorão, foi às fontes bíblicas, e daí seguiu aos apócrifos. Uma lenda leva a outra, um mito é todos os mitos, um símbolo remete a outro símbolo, sempre anterior: por isso, na lógica dos hermetistas, mais verdadeiro por estar mais próximo da origem.

* * *

Uma característica importante de Nerval é sua duplicidade, comentada por estudiosos. Em Aurélia e As Quimeras, foi esoterista a sério. Em outros escritos, tratou das disciplinas herméticas e suas ramificações à distância, ironicamente, como um cronista e não como adepto. No prefácio de Les Illuminés, sobre a biblioteca de seu tio-avô, comentou que, bem jovem, absorvi muito dessa alimentação indigesta ou insalubre para a alma; e mesmo mais tarde, meu julgamento teve que se defender contra essas impressões primitivas. [14] Também em Angélique, primeira narrativa de Les filles du Feu, os encontros de iluminados que preparavam silenciosamente o futuro no castelo de Ermenonville –Saint-Germain, Mesmer, Cagliostro, e mais tarde Sénancour, o “filósofo desconhecido” Saint-Martin, Dupont de Nempours, Cazotte – resultariam de idéias bizarras; as aparições que os visitavam foram tratadas como infantilidade. [15] E sua primeira coletânea de contos fantásticos, que incluiu o simbolicamente tão rico A Mão Encantada, foi intitulada Contes et facécies – facécias, brincadeiras.

Portanto, parecia oscilar entre a fé e o ceticismo, adesão e crítica. Poeta desesperado e, em momentos importantes, delirante, e autor de relatos históricos e crônicas de viagem como jornalista, além de autor ou co-autor de peças teatrais que visavam ao entretenimento, como Piquillo, é como se houvesse dois Nerval – ou o mesmo, porém movido por estados de espírito e inclinações distintas. Daí Richer mencionar suas múltiplas máscaras, umas sorridentes, outras inquietantes, [16] e observar que nele coexistiram um precursor do surrealismo e outro de Anatole France. Jean Guilllaume, outro estudioso importante de Nerval, também publicou um ensaio sobre suas múltiplas máscaras.

É claro que a duplicidade de Nerval se relaciona com ele viver do que escrevia, não só como autor de livros, mas como jornalista e dramaturgo, produzindo uma dualidade de escritas, para o mercado e para os iniciados.

Mas há outras interpretações possíveis dessa duplicidade. Uma delas, não como negação do esoterismo, mas como insatisfação, desejo de superação: Nerval se perfilava entre aqueles a quem não bastavam as certezas e as consolações da religião esotérica, comenta Richer. [17] Ver idéias bizarras e infantilidade em ocultistas seria querer ir além; e seus motivos se assemelhariam aos que levaram Blake a satirizar Swedenborg.

Sua ambivalência também pode corresponder à oscilação entre os dois pólos do romantismo, analogia e ironia, comentados por Octavio Paz em Os Filhos do Barro. Pólos opostos, porém complementares, ambas, ironia e analogia, atacam a relação de significação, a idéia de que a cada termo ou enunciado corresponde um referente. O pensamento analógico supõe que uma coisa sempre pode ser outra. A ironia, por sua vez, mostra o sem-sentido do que aparenta ter sentido.

Dualidade é o que se observa também, não só entre obras, mas internamente, no modo como são estruturadas. Em narrativas de viagens, como Voyage à l’Orient e Lorely, alternam-se os relatos de acontecimentos reais, de como eram os lugares visitados, com textos puramente ficcionais, de aventuras inventadas, além de transcrições e adaptações de lendas e fábulas. Essa alternância confundiu leitores, chegando a gerar lendas como a do seu casamento egípcio. Descrições de lugares onde nunca havia estado justificam, na Oeuvre Complète, a publicação de dois mapas, um deles com os trajetos fisicamente reais, outro com aqueles da narrativa.

Estudiosos se referem a seu desdobramento ou duplicação, a uma consciência da alteridade nessas narrativas de viagem. [18] A estruturação binária, em planos que se confundem, é mais ainda complexa em narrativas ficcionais. Para Jacques Bony, nas notas sobre Sylvie da Oeuvre Complète, pode-se facilmente concluir que a novela, que repousa sobre duas intrigas e sobre a oposição de duas heroínas, tem uma estrutura binária fortemente marcada.

Sylvie, que integra Les filles du Feu, é tida como obra-prima de Nerval; de modo superlativo, como um dos maiores livros já escritos por Umberto Eco, [19] em acréscimo aos elogios de Proust a essa novela em Contre Sainte-Beuve. Nela, dois tempos se alternam, o presente do narrador e seu passado, e dois espaços que também são planos de realidade, de Paris e da província, por sua vez associados a três personagens femininas: Sylvie, a quem o protagonista quer reencontrar; Adrienne, rememorada; e Aurélia, a musa perdida. Mas essas alternâncias de espaço e tempo, ao se sucederem, também se multiplicam, pois o tempo de um capítulo recorda o tempo de outro, e esse de outro, e assim por diante. Resulta, como o demonstrou Eco, em uma narrativa impossível, mesmo com a forma do relato realista. São impossibilidades temporais, e também, em outros de seus textos, espaciais: roteiros implausíveis de idas e vindas entre diferentes localidades, como em Angélique.

Relações de reflexão ou em eco, no interior da obra ou na relação entre várias obras, fazem que uma, sendo autônoma, também seja um comentário de outra. Em Angélique, primeira das narrativas de Les Filles du Feu, publicado em 1854, entrecruzam-se dois enredos: um deles na primeira pessoa, de um pesquisador que busca reconstituir a história do Abade de Bucquoy e descobre aquela de Angélique de Longeval; outro, a história reconstituída da própria Angélique. Mas a busca de informação sobre o Abade de Bucquoy já havia sido o tema de Les faux Saulniers, de 1850 (saulniers são trabalhadores em salinas); e os resultados da pesquisa acabariam dando em Histoire de l’Abbé de Bucquoy, de 1852, que integra Les Illuminés; de quebra, relatos de viagem em Les faux Saulniers seriam recortados e publicados em La Bohême Galante, também em 1852.

Há muito mais dessas manifestações de desprezo pela unidade da obra em Nerval, tornando-o mestre da interpolação, de encadeamentos narrativos que justificam ele apontar Lawrence Sterne, o autor de Tristan Shandy, como uma de suas leituras.

Monday, September 22, 2008

DADAÍSMO



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Discute‑se a data, o lugar e o autor da invenção do Dadaísmo. Parece‑me, no entanto, que algumas observações feitas por alguns estudiosos são as mais exactas e podemos sintetizá‑las nestas frases do manifesto que, em 1920, anunciava o fim do movimento em Ber­lim: «Dadá era flagrante em todo o lado e ninguém o podia inventar. Um baptismo não é uma invenção» (1). Não iremos ao ponto de afir­mar, como um dos corifeus do movimento, que «naquele tempo TUDO era DADÁ e DADÁ era TUDO» (2). Mas uma semelhante menta­lidade, uma atitude muito parecida, um mesmo conjunto de cir­cunstâncias, estavam espalhados por vários países e continentes e provocavam, naturalmente, o mesmo tipo de reacções. Assente isto, verificaremos que as características essenciais e definidoras do Dadaísmo existem em estados, regiões e género de pessoas muito diversos, em movimentos e personalidades anteriores e que, não só «Dadá é mais do que Dadá» (como afirma o Manifesto acima citado), mas também Dadá precede Dadá. Uma das qualidades dos movimentos surgidos por esta altura é a das suas implicações políticas. Realmente, eles ultrapassam, em regra, a simples consideração estética e, antes de tudo, são uma atitude perante o mundo e a acção, uma espécie de filosofia, uma interpre­tação e afirmação totais. Assim, nota‑se que o Futurismo, sem men­tira nenhuma (3) se declara explicitamente também político e ao Fascismo se une, exceptuando o Futurismo russo que, com Maia­kowsky, apoia o Comunismo. Os três chefes do Imagismo e do Vorticismo ligam‑se: ao mais antidemocrático autoritarismo, das direi­tas, como T. E. Hulme, ao Nazismo, como Wyndham Lewis, ao Fascismo, como Ezra Pound. Por sua vez, o Dadaísmo vai, na Ale­manha, passar de atitudes anarquizantes, a comprometer‑se com o Comunismo, assim como o anarquismo futurista italiano desagua no Fascismo. Dadá teve diversos precedentes e ancestrais ‑ mais ou menos próximos. Entre eles, podemos citar, por exemplo, Alfred Jarry (4), Lautréamont, Henri Rousseau, Apollinaire, o Cubismo, o Futurismo e o Expressionismo. O Cubismo é menos uma doutrina do que um processo. Dadá herdou dos cubistas certas coisas, como o gosto pelo repartimento, pela decomposição e pelo simultaneísmo e, ainda, a inovação de materiais. Quanto ao Futurismo e ao Expres­sionismo, foram já uma atitude espiritual, uma teoria e uma doutrina que deram consequências no Dadá. O Futurismo tem, de certo modo, como início declarado o Manifesto Futurista que Marinetti publicou no Fígaro, em 20 de Fevereiro de 1909 (embora possa remontar a 1907 e até antes). O Expressionismo terá começado com o grupo Die Brücke, em Dresda, em 1902, segundo afirma Roh, mas Lionello Venturi aponta a data de 1903 (dissolução do grupo em 1913), Woermann diz 1906, e Barthélemy Ott escreve que o termo «expres­sionismo» foi empregue pela primeira vez por Otto zur Linde em 1911. Seja como for, ambos estes movimentos dão entrada ao Dadaísmo. Quanto ao Futurismo, atente‑se nestas declarações de seus Mani­festos (5): «O artista deve ter uma originalidade natural. ...Nenhuma obra a que falte o carácter agressivo pode ser uma obra‑prima. ...Nós queremos glorificar... o gesto destrutor dos libertários». E Marinetti aponta fundamentais ideias futuristas: «Antimuseu. Anticultura Antiacademia. Antilógica. Antigracioso. Anti‑sentimental. ...Destrui­ção da síntaxe. ...Palavras em liberdade rumorística. ...Síntese de forma‑cor. ...Dinamismo plástico. ...Pintura abstracta de sons, rumo­res, odores, pesos e forças misteriosas. Compenetração e simultanei­dade de tempo‑espaço, longínquo‑próximo, exterior‑interior, visto­‑sonhado. ...Dança palavra‑livre mecânica do corpo multiplicado. ...Declamação politímbrica». E «orquestram‑se as cores, os rumores e os sons, combinam‑se os materiais da língua e dos dialectos, as fórmulas aritméticas e geométricas, os sinais musicais, as palavras velhas, deformadas ou novas, os gritos dos animais, das feras e dos motores. ...Destrói‑se a síntaxe, abule‑se a pontuação, o adjectivo e o advérbio, usa‑se o verbo no infinito, adopta‑se um estilo analógico».
Quanto ao Expressionismo, reparemos nestas características apontadas por Geneviève Bianquis: «Reclama‑se uma poesia que diga a aspiração colectiva, o borborinho das multidões, a unanimidade dos corações. Que interessa notar os reflexos em nós do inundo exterior? É preciso mas é dizer violentamente o que se passa em nós, o que nos sobressalta e nos rasga: não a impressão, mas sim a expressão; não o exterior, mas o interior; não o efémero e o acidental, mas o eterno e o imutável, o sempre verdadeiro. Sente‑se que se vive num mundo artificial, inteiramente mecanizado e industrializado, dilace­rado, por ódios de nações e de classes, onde o coração, o sonho, a paixão sofrem por serem oprimidos e torturados. Não há senão um passo desde aqui até às doutrinas revolucionárias e anarquistas que lançam o anátema sobre o mundo presente e anunciam o advento de um reino de fraternidade entusiástica, de espontaneidade desbor­dante. Os primeiros expressionistas são, na maioria, socialistas, demo­cráticos, pacifistas, e mais raramente anarquistas. Em nome da poesia, eles atacam o militarismo e o capitalismo, a Igreja e o Estado moderno. Mas a crítica deles nada tem ele crítica racional: ela é de jeito religioso e profético, lírico e furibundo, expande‑se em anátemas, exalta‑se até ao êxtase, dissolve‑se em frenéticos balbuceios ou em soluços» (6).
O que passou destes dois movimentos para o Dadaísmo? Em primeiro lugar, uma declarada oposição à chamada Cultura, que ele identifica com uma coisa enquistada, bolorenta, anacrónica e formalista, vazia de vida, com algo que é pura erudição e rotina, anemizante repetição do passado; requer‑se uma iniciativa própria e criadora, uma descontingenciação e uma descontracção, um movimento, uma fúria destruidora, irreverente, implacável. Em segundo lugar, busca‑se o natural e o primitivo, aquilo que o Dadaísmo supõe ser a originária e fecunda natureza do homem e residir num certo interior, e na permanência e não no acidental imposto pelo exterior, pelo deformante; julga, assim, que a sociedade e a civilização distorceram ou abafaram o verdadeiro homem e o autêntico valor (embora os dadaístas neguem todos os valores, requeiram a arbitrariedade e imponham o Eu). Se os futuristas atacam uma sociedade, uma cultura e uma civilização atrasadas, ultrapassadas, estáticas, preguiçosas, vazias, os dadaístas enfileiram mais ao lado dos expressionistas e vêm atacar a própria Sociedade (e as suas sociedades: Igreja, Exército, Família, Nação, Estado), a Cultura e a Civilização e ainda os seus produtos, inclusivamente a Arte. Por isso. como diz Rafael Benet, «Dadá não tem estilo; não é nenhum estilo; é, apenas, um estado de espírito. ... Que triste destino o do artista contemporâneo cheio de inchada vaidade, sem princípios, pleno de asco por tudo o que o rodeia, impotente por causa da sua absurda ambição do nada! A invasão literária — da má literatura —, o mau humor contra tudo o que está estabe­lecido, um informulado desejo de infinito, um asco da vida, um estado de vesania, são as causas do nascimento de Dadá» (7). Tristan Tzara declara que «o movimento é só a materialização do seu asco: que para ­ele só contam a indiferença activa, a espontaneidade e a relativi­dade» (. Ao Dadaísmo «falta‑lhe a esperança; confunde tudo num caos abominável: o bem e o mal misturam‑se...» (7). É uma constante destruição, até de si próprio, é continuamente subversão, negação.
O Dadaísmo só deseja e aceita a vida, mas, por temor ao enquis­tamento, ao formalismo e à cristalização, confunde a vida com desordem, destruição, ultrapassagem e negação de toda a forma. Deseja a permanência mas não na forma, sim no fluir, na corrente, no ímpeto aniquilador — interiores e anteriores a todas as formas de vida. Por isso, compreende‑se que ataque os géneros, as artes, as ciências, a filosofia, a estética, e seja contra o que está aceite, respeitado ou admi­rado, contra o que é costume, contra a regra e a ordem. E é esta a razão por que vai buscar — e este o espírito com que vai buscar —, continuando‑os e adaptando‑os, processos e invenções de outros movi­mentos (cubistas, expressionistas, futuristas). Em vez da civilização, da cultura e da arte, proclama a natureza, a vida, o primitivismo ou a banalidade que fere o artificialismo; em vez do regulamento, da etiqueta e da aprendizagem, requer o desregramento, a confusão, a fealdade e o acaso. Em vez do objecto artístico, o desprezo por ele, o insulto a ele, e o objecto vulgar, de uso comum e de fabrico comum. Trata‑se de corroer, dissolver, desarticular, estilhaçar, misturar, confun­dir, provocar o absurdo e o caos. A pontuação e as maiúsculas são abolidas ou utilizadas arbitrariamente. Procura‑se obter novidades, efeitos chocantes e recobrar um ingénuo, originário sentido criativo. Para isso, consorciam‑se figuras, materiais, formas e assuntos separados ou inconciliáveis, quer no campo visual (com a fotocolagem e a foto­montagem), quer no campo literário e dos géneros, e até se misturam vários processos (literários, gráficos, plásticos, de movimento, etc.) e também se conjugam pedaços ou totalidades de objectos naturais, de produções artísticas e de produtos de uso vulgar ou utilitário. Perceber­‑se‑á, por conseguinte, a razão de ser de obras como estas: A Gio­conda, de Leonardo da Vinci, com uns bigodes postos por Marcel Duchamp, (na grande Exposição dadá de Berlim); uma vulgar retrete de louça, com a assinatura de R. Mut, pseudónimo do mesmo Du­champ na 1.ª Exposição de Arte Moderna, em Nova lorque); os desenhos e as madeiras gravadas de Arp, simplificações e combinações essenciais das formas gastas e polidas de conchas e pedras de praia, ou dos ondeados dos troncos.
Se há um espírito comum aos movimentos Dadá em todos os países e localidades há, no entanto, algo que os diferencia. Hausmann diz o seguinte: «As relações entre os diferentes grupos dadás na Alemanha eram nulas e, fora das semelhanças criadas pela época, nós estávamos até 1920 separados uns dos outros por abismos» (9). Por exemplo, e mais vastamente: Os Franceses voltavam‑se para o mara­vilhoso dos românticos Alemães, para o subconsciente freudiano, para a Alemanha, enfim; os Alemães (embora o grupo de Colónia estivesse mais próximo da atitude francesa) atacavam a Alemanha que a si própria se exalta e pretendiam haver ultrapassado Freud: «Combatemos essa civilização teutónica, opondo‑lhe, não o Nada surrealista-existencialista, mas um mundo recriado por nós e pelos nossos conhecimentos» (10).
Talvez pertencessem ao grupo de Berlim as maiores tendências e autenticidade do Dadaísmo, algo anterior ao movimento declarado e ao nome, algo que continuou posterior a eles, algo que pretende não findar, algo que revela a proclamação (na linha de outra feita por Marinetti): «Ser antidadá é ser Dadá. ...Dadá é a sua própria contra­‑revolução». Hausmann elucida: «As nossas intenções, justificadas pelas nossas experiências no domínio da mania e da catatonia, e pela parti­cipação dum grande desequilibrado, Johannes Baader, só se podiam manifestar sob a máscara de Dadá. ...Nós havíamo‑nos posto de acordo com Huelsenbeck à sua volta da Suíça, para nos servirmos dele e de Dadá como sapa e base de combate contra a sociedade e os intelectuais, considerando dissolvente a nossa atitude, realizada e vivida» (11).
Como surgiu, porém, o nome Dadá e como se declarou o movi­mento? A ironia, o ataque e o escândalo tomam, a partir de 1910, cada vez mais lugar nas obras de Duchamp e Picabia, para «edificar a conjura pré‑dadaísta à qual se deverá juntar Apollinaire e que terá por primeiro efeito a ruptura com o espírito de gravidade». Em 1913, eles, pela Suíça e Paris, estão já, de certo modo, elaborando o «complot dadá» em cuja origem está «uma reacção do espírito de infância contra a pressão cada vez mais nítida dos acontecimentos». Em 1913‑14, Duchamp apresenta os seus «ready-made» e com eles chega a Nova lorque em 1915, onde com Man Ray e Picabia desenvolve novas acti­vidades pré‑dadaístas (12).
Hausmann refere‑se à «atmosfera e ambiente protodadá em Berlim: «Desde a declaração de guerra (1914) nós tentávamos revoltar o espírito de escravos do povo alemão». Em 1912, o escritor Franz Jung publicara O Livro do Imbecil (Trottelbuch), «o descaminho inte­rior e a impotência em face dos fenómenos duma vida absurda». Um senhor Johannes Baader, que se evadira do manicómio pela pri­meira vez em 17 de Setembro de 1899 (aos 23 anos), tomava atitudes de «irrealidade» e toda a sua vida se considerou Jesus Cristo tornado a vir das nuvens do Céu. Numa revista, Die Aktion, que inseria colaboração política e de pintores e escritores vanguardistas, colabo­ravam também Raoul Hausmann e Franz Jung que se conheceram em 1916. Ambos os autores juntos publicaram vários cadernos e revistas como Die Freie Strasse (A estrada livre), «distribuída gratui­tamente para divulgar uma nova psicanálise formulada por Otto Gross». Um comum amigo de ambos, o poeta Richard Huelsenbeck, militar reformado, foi para a Suíça, onde residia outro alemão, o refrac­tário Hugo Ball. Este último e a sua amiga Emmy Hennings «organi­zavam nesse tempo, no «Cabaret Voltaire», em Zurique, «serões em que se diziam versos, em que pintores apresentavam quadros, desenhos, «pa­péis colados», e em que se punham em cena espectáculos de dança» (13). A Hugo Ball haviam‑se reunido Hans Arp, (outro alemão, nascido em Estrasburgo) e os romenos Tristan Tzara e Marcel Janco, e então juntou‑se‑lhes Huelsenbeck. O movimento existia já, portanto. E o nome? Marcel Jean conta assim o caso: «Ball e Huelsenbeck procura­vam um nome artístico para uma cantora do cabaret e, para isso, abriram ao acaso um dicionário franco-alemão. O primeiro termo que lhes caiu debaixo dos olhos foi Dadá e, então Dadá tomou‑se, não um pseudónimo, e sim o nome do novo moviment0» (12). Era o dia 8 de Fevereiro de 1916. No entanto, quer Tristan Tzara quer Hans Arp reivindicam também para cada um deles a invenção da palavra (12). Ainda nesse ano, publica‑se «Cabaret Voltaire», um volume «artístico e literário, em cujo prefácio surge, pela primeira vez e pela pena de Ball, a palavra DADÁ» (13).
Em Zurique o movimento continua com várias actividades: espec­táculos tumultuosos no cabaret; exposições escandalosas em salas de espectáculos; sessões desvairadas, abracadabrantes, de cómico e gra­vidade. Em Fevereiro de 1917, Huelsenbeck volta a Berlim, e liga‑se a Franz Jung e a Hausmann. Nesse mesmo ano, forma‑se naquela cidade o movimento Dadá. Em Abril de 1918, surge o primeiro Manifesto Dadá em Berlim, assinado por Tristan Tzara, Franz Jung, Georges Grosz, Marcel Janco, Richard Huelsenbeck, Gehrard Preisz, Raoul Hausmann. Entretanto, Max Ernst, que «morrera em 1 de Agosto de 1914», ressuscita em 11 de Novembro de 1918, «como um jovem aspirando a tomar‑se mágico e a descobrir o mito da sua época».
Ao ressuscitar, Max Ernst ligou‑se a Dadá, e, com o seu amigo Baargeld, tornou‑se o animador do movimento na cidade de Colónia (15) e por toda a Renânia. Em Berlim, Baader nomeava‑se Ober‑Dada (Supradadá). Começam a desenvolver‑se várias manifestações dadaís­tas, individuais ou colectivas, desde o folheto e a exposição até ao cabaret dadá. Na Suíça, Tzara e Arp criam uma dança de urso e, na Alemanha, Hausmann e seus companheiros inventam e apresen­tam danças como o sixty‑one‑step. Fazem‑se conferências, recitais, uma estranha mistura de arenga e espectáculo. Em Paris, Dadá afecta autores como Cendrars, Picasso, Breton. Atinge, depois Barce­lona. Em Portugal, podem considerar‑se dadaístas várias atitudes e obras de Almada Negreiros e Santa‑Rita Pintor. A actividade dadá estende‑se, renova‑se, inova, inventa, ataca. Apresenta esculturas híbridas, poemas fonéticos, fotomontagens, cinema sintético da pin­tura. Intervém, por vezes, muito ligada ou aparentada com factos políticos. Na Alemanha esteve, desde início, bastante próximo dos comunistas. J. E. Baargeld era um dos corifeus do movimento dadá em Colónia e também do Partido Comunista. Naquela cidade, o periódico do grupo era o jornal comunista Der Ventilador. O dadá John Heartfield era mesmo filiado no partido. Em Novembro de 1918, deu‑se em Berlim a revolução soviética que durou uma semana e que nomeou Huelsenbeck para comissário das Belas‑Artes. Outros dadás, embora não pertencendo ao partido, desenvolviam actividades coin­cidentes, como certas conferências que, no dizer de Georges Hugnet, «se não eram oficialmente meetings comunistas, militavam acima de tudo a favor da revolução total que Lenine e o Marxismo haviam levado à velha Rússia» (16).
E assim Dadá alarga‑se, desdobra‑se, parte‑se, aniquila‑se, desfi­gura‑se. Vai influenciar outros movimentos, alguns que o negam, tal como ele negou e atacou os seus ancestrais Futurismo e Expressionismo. Vai tomar nova forma, clássica, moderada e ordenada, no Surrea­lismo (17). Vai tentar novo e efémero sobressalto no movimento Anti­dadá de Merck, de Hausmann e Schwitters. Vai ser «um protótipo do Existencialismo» e permitir que Sartre se chame o novo dadá (1. Conforme escreve Rafael Benet, «encontramos associados a Dadá, num período ou noutro, elementos tão heterogéneos como Picasso, Ecgeling, Segal, Janco, Marinetti, Apollinaire, Modigliani, Arp, Huel­senbeck, Kandinsky, Van Rees, Cendrars, Ball, Grosz, Max Ernst, Picabia, Marcel Duchamp, Man Ray, Aragon, Breton, R. Hausmann, Johannes Baader, Eluard, Carl Einstein, Franz Jung, Friedlaender, Heartfield, Kisling, Chirico, Lissitzky, Mondrian, Däubler, Citroën, Paul Dermée, Giacometti, Baumaister, etc.» (19). Produto da nossa época indisciplinada e dividida, sem fé nem hierarquias, produto duma vida angustiosa e dum materialismo que não satisfaz e duma ansie­dade febricitante, Dadá é o desespero (menor, em todo o caso, do que o desespero para além do desespero que existe no vácuo anunciado em Samuel Beckett, por exemplo). Dadá é pretensa actividade humana e pseudo‑alegria: nada encontra, porque nada também pode dar.

Goulart Nogueira

Notas:
1 — Raoul Hausmann, Courrier Dada, Le Terrain Vague, Paris, 1958.
2 — Raoul Hausmann, ob. cit., p. 14.
3 — Cf. João Gaspar Simões, A Mentira do Futurismo, in «Diário Ilustrado», Junho de 1959, onde preconceituosarmente se ataca o Futurismo.
4 — Cf. Georges Ribemont‑Dessaignes, Avant Dada, in «Les lettres nouvelles», n.º 32, p. 543: « ... Um dos homens cuja influência se exerceu, visível ou invisível, sobre o estado artístico dum período que se pode situar entre 1905 e 1925».
5 — Manifestos Futuristas, citados por Marinetti, in Futurismo, Enci­clopédia Italiana, 1932.
6 — Geneviève Bianquis, Histoire de Ia Littérature Allemande, Libr. Armand Colin, Paris, 1958, pp. 197‑198.
7 — Rafael Benet, Futurismo y Dada, Barcelona, 1949, pp. 19‑20­.
8 — Citado por Rafael Benet, ob. cit., p. 20.
9 — Raoul Hausmann, ob. cit., p. 45.
10 — Raoul Hausmann, ob. cit., p. 32.
11 — Raoul Hausmann, ob. cit., pp. 26 e 31.
12 — Robert Lebel, Marcel Duchamp, 1959.
13 — Marcel Jean, Jalons d`Arp, in «Les Lettres Nouvelles», n.º 35.
14 —Georges Ribemont~Dessaignes, ob cit., p. 539.
15 — A. Mezei e Marcel Jean, Sur Max Ernst, in «Les lettres nouvel­les», n.º 14, contam, duma das principais exposições dadás em Colónia: «Baargeld exibia o "Fluidoskeptryk", aquário cheio de água vermelha onde estavam mergulhados um despertador, uma cabeleira de mulher e uma mão de madeira. ...A exposição foi inaugurada por uma rapariguinha de primeira comunhão. A rapariguinha recitou poemas de Jakob van Hoddis qualificados pela assistência de obscenos e, depois, fez em cacos o "Fluidoskeptryk" que espalhou o seu sangue falso aos pés dos espectadores indignados. 0 escândalo foi tal que a polícia mandou fechar a exposição».
16 — Georges Hugnet, L`esprit dada en Allemagne, «Cahiers d'Art», 1932.
17 — Henri Peyre, «Que es el clasicismo», Fondo de Cultura Económica, México, 1953, anota: «O mais inteligente e ao mesmo tempo o único excelente historiador da arte contemporânea (René Huyghe) assinalou engenhosa e justamente...... como o surrealismo não é, no fundo, mais do que a imposição da lógica francesa sobre o anárquico dadaísmo de origem estrangeira.».
18 — Huelsenbeck, Manifesto de 1949, citado por Raoul Hausmann.
19 — Rafael Benet, ob. cit.
G. N.
(In Tempo Presente, n.º 6, Outubro de 1959, págs. 20 a 29)