Sunday, February 17, 2008

ZARATUSTRA


NIETZSCHE - "ASSIM FALAVA ZARATUSTRA, DA VISÃO E DO ENIGMA"





1. Quando os marinheiros souberam que Zaratustra estava a abordo – porque, ao mesmo tempo que ele, subira para bordo outro homem vindo das ilhas Afortunadas – houve grande curiosidade e grande expectativa. Zaratustra, porém, conservou-se em silêncio durante dois dias, frio e surdo na sua tristeza, não respondendo nem aos olhares nem às perguntas. Na noite do segundo dia, contudo, voltou a abrir os ouvidos, conquanto permanecesse calado; porque naquele barco, que vinha de longe e que ia para mais longe ainda, não faltavam coisas estranhas e perigosas para ouvir. Ora Zaratustra era amigo de todos os que fazem grandes viagens e não gostam de viver sem perigo. E eis que, enfim, à força de ouvir, sentiu a língua desatar-se também, e fundir-se o gelo do seu coração – e pôs-se a falar nestes termos:


“A vós, procuradores ousados, exploradores e a todos quantos alguma vez embarcaram com velas astutas para vencer os mares terríveis,

a vós ébrios de enigmas, amigos das penumbras, cuja alma cede ao apelo de flauta de todos os dédalos do abismo,

- porque vos recusais a seguir com mão medrosa um fio condutor, e o que podeis adivinhar, detestais de o ter de o deduzir –

somente a vós contarei o enigma que vi, a visão do solitário entre os solitários.

Atravessei ultimamente, muito triste, pelo meio de um crepúsculo lívido – sombrio e duro, com os lábios contraídos. Para mim mais de um sol se pusera.

Um atalho que subia obstinadamente por entre o entulho, um atalho perverso e solitário, desertado pela erva e pelas brenhas, um atalho de montanha rangia sob o desafio dos meus pés.

Progredindo, mudos, por entre o ranger trocista dos calhaus calcando a pedra que os fazia resvalar, os meus pés subiam pouco a pouco.

Subiam – a despeito do espírito que os arrastava para o precipício, o espírito da Gravidade, meu demónio e mortal inimigo.

Subiam – se bem que o demónio me cavalgasse entre gnomo e toupeira; paralisado e paralisador; instilando no meu cérebro chumbo pelos ouvidos, pensamentos parecidos com chumbo derretido.

“Ó Zaratustra – sussurrava ele em tom chocarreiro, separando as sílabas – pedra da sabedoria! Atiras-te muito alto mas toda a pedra atirada acaba por… voltar a cair!

Ó Zaratustra, pedra da sabedoria, pedra atirada por uma funda, destruidor de estrelas! Foi a ti mesmo que atiraste tão alto, mas toda a pedra atirada acaba por … cair.

Condenado a ti mesmo e à tua própria lapidação, ó Zaratustra, atiraste muito longe a tua pedra… mas será sobre ti que ela voltará a cair.”

Aqui se calou o anão; e muito tempo decorreu. Mas o seu silêncio oprimia-me, e num semelhante colóquio, na verdade, está-se mais só do que quando se está só.

Eu subia, subia, sonhando, pensando – mas tudo me oprimia. Assemelhava-me a um enfermo cansado do seu duro martírio, e a quem um sonho pior desperta do seu sono.

Eu, porém, tenho em mim essa coisa a que chamo a minha coragem; até agora conseguiu destruir todos os meus desencorajamentos. Essa coragem forçou-me por fim a fazer alto e a dizer: “Gnomo! Ou tu ou eu!”.

Com efeito não há melhor assassino do que a coragem – a coragem que ataca, porque quem diz ataque diz fanfarra.

Ora o homem é o animal mais corajoso. Foi por essa razão que venceu todos os outros animais. Ao som da fanfarra superou além disso todas as dores; e a dor humana é a pior das dores.

A coragem destrói também a vertigem que assombra a margem dos abismos! E onde haverá lugar onde o homem não se encontre à beira dos abismos? Não basta olhar para nos darmos conta desses abismos?

A coragem é o mais hábil dos matadores; a coragem mata até a compaixão. Ora a compaixão é o abismo mais profundo; quando o homem mergulha o olhar na vida é na compaixão que o mergulha.

Mas a coragem é o mais hábil dos matadores – a coragem que ataca. Matará até a morte, porque diz: “Era então isto vida? Então vamos recomeçar!”

Mas semelhante máxima, é uma fanfarra. Quem tiver ouvidos que oiça.

2.
“Detém-te, gnomo!” – disse – Ou eu ou tu! Eu, porém, sou o mais forte dos dois. Tu não conheces o meu pensamento de abismo; não serias capaz de o suportar.”

Nisto senti que se me aliviava a carga, porque o anão, curioso como era, me saltou dos ombros. E agachou-se numa pedra diante de mim. Mas no sítio onde tínhamos parado encontrava-se justamente uma porta.

“Olha para esta porta, gnomo – prossegui. – Tem duas saídas. Aqui se reúnem dois caminhos; ainda ninguém os seguiu até ao fim.

Este longo caminho que se estende atrás de nós, dura uma eternidade. E o longo caminho que se estende diante de nós, é outra eternidade.

Estes caminhos são contrários, opõem-se frontalmente, e é aqui, sob esta porta, que se encontram. O nome da porta está escrito no frontão: esse nome é “instante”.

Se alguém, todavia, seguisse por um destes caminhos, sem parar e até ao fim, julgas, gnomo, que estes caminhos se oporiam sempre?”

“Tudo quanto é recto mente – murmurou o anão com desdém. – Toda a verdade é sinuosa, o próprio tempo é um círculo.”

“Espírito de Gravidade, disse eu irado – não tomes as coisas tão ao de leve, ou te deixo onde estás agachado, coxo – e olha que fui eu que te trouxe cá acima!

Olha para este instante – continuei. – A partir desta porta do Instante um longo caminho, um caminho eterno, estende-se para trás de nós; há uma eternidade atrás de nós.

Tudo quanto é capaz de correr não deve, necessariamente, ter já percorrido este caminho ao menos uma vez? Tudo o que pode suceder, entre todas as coisas, não deve ter já acontecido, ocorrido, ter passado?

E se tudo o que já foi, que pensas deste instante, anão? Esta potra não deve também ter já estado?

E não estão todas as coisas tão solidamente imbricadas que este instante arrasta após si todas as coisas futuras? E também ele próprio, por consequência?

Porque tudo quanto é capaz de correr deverá sem nenhuma dúvida percorrer mais uma vez este longo caminho que se afasta daqui!

E aquela lenta aranha que rasteja ao luar, e este luar e tu e eu debaixo desta porta, falando em voz baixa de coisas eternas, - não é necessariamente obrigatório que uns e outros tenhamos já existido?

Não nos será necessário regressar e percorrer este outro caminho que se afasta diante de nós, este caminho longo e temível – não será necessário que todos regressemos?”

Assim falava eu, em voz cada vez mais baixa, porque tinha medo dos meus próprios pensamentos e da sua oculta intenção. Então de súbito ouvi muito perto de mim uivar um cão.

Já alguma vez tinha ouvido uivar um cão daquela maneira? O meu pensamento percorreu rapidamente o curso do tempo. Sim, quando era criança, na minha mais distante meninice,

ouvi um cão uivar assim. E vi-o também, com o pêlo eriçado, a cabeça levantada, trémulo, à hora silenciosa da meia-noite, quando até os próprios cães acreditam em fantasmas,

de modo que me enchi de pena. A lua cheia subia precisamente num silêncio de morte por cima da casa; depois deteve-se semelhante a um disco incandescente por cima do telhado liso, como se instalasse na propriedade alheia.

Foi isso que aterrou o cão: os cães acreditam nos ladrões e nos fantasmas. E quando ouvi outra vez aquele uivo, senti-me como outrora dominado pela piedade.

Para onde fora o gnomo? E a porta? E a aranha? E aquela voz sussurrante? Teria sonhado? Estaria a acordar? Voltei a encontrar-me no meio dos rochedos agrestes, sozinho de repente, abandonado ao luar mais desolado que existia.

Mas ali jazia um homem! E o cão, a saltar e a gemer, de pêlo eriçado, viu-me caminhar então, e começou a uivar outra vez e pôs-se a gritar. Já alguma vez tinha ouvido um cão gritar por socorro daquela maneira?

E vi, na verdade, aquilo de que nada, anteriormente, me tinha dado ideia. Vi um moço pastor a contorcer-se anelante e convulso, o semblante desfigurado, porque uma pesada serpente lhe pendia da boca.

Quando vira eu tamanha repugnância e pálido terror pintado no mesmo rosto? Tinha adormecido, decerto. E a serpente tinha-se-lhe introduzido na garganta, ali se aferrando com suas presas.

A minha mão começou a puxar a serpente, puxou… mas em vão! Não conseguia extirpar da garganta aquela serpente. Então uma voz gritou pela minha boca: “Morde! Morde!

Morde! Arranca-lhe a cabeça!”, gritava a voz. Espanto, ódio, nojo, piedade, tudo o que trazia de melhor e de pior em mim jorravam de mim num único grito.

Valentes que me rodeais, exploradores, aventureiros, e vós outros que nunca embarcastes sob velas astuciosas, por mares nunca explorados, amadores de enigmas,

decifrai-me o enigma que vi então, interpretai um pouco a visão do mais solitário!

Porque era ao mesmo tempo visão e previsão. Que vi então em imagem? E qual é o que deve chegar um dia?

Quem é o pastor, quem é a serpente que se lhe introduziu na garganta? Quem é o homem em cuja garganta se introduzirá assim o que há de mais negro e de mais pesado no mundo?

- O pastor, porém, começou a morder, como o meu grito lhe tinha aconselhado; mordeu de maneira firme! Cuspiu para longe de si a cabeça da serpente e levantou-se com um salto.

- Já não era pastor, já não era homem – transformado, transfigurado, ria! Nunca houve homem nesta terra que se risse como ele.

Ó meus irmãos! Ouvi uma risada que não era um riso humano, e agora devora-me uma sede, uma ânsia que nada aplacará.

Devora-me a ânsia daquele riso; oh!, como posso tolerar ainda a vida! E como tolerar agora a morte!

Assim falava Zaratustra.

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